Modernidade mestiça
12/03/2017 10:55
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 12 de março de 2017
Modernidade mestiça
Arthur Soffiati
 
Meu exame atento da história humana conclui que nunca uma cultura se afastou tanto da natureza como a ocidental. Todas as outras, em níveis distintos de complexidade, sempre mantiveram relações estreitas com o que chamamos de natureza. Os povos nativos de todos os continentes se consideravam parte dela.
Dirão os leitores que os povos não ocidentais desmatavam, caçavam e até eram canibais. Em todas as culturas, não existe natureza intocada. No entanto, os limites de exploração eram respeitados. Claro que algumas passaram dos limites, provocando crises. Mas tais crises eram locais e reversíveis. O ocidente desenvolveu a concepção de que a natureza é uma coisa sem limites para ser explorada em benefício da humanidade. Trata-se, talvez, da maior ideologia já formulada até hoje. A exploração desenfreada tem o lucro por finalidade.
Um dos traços característicos do mundo ocidental e ocidentalizado é o desejo de promover grandes projetos. De certa maneira, o intelectual alemão Goethe demonstrou esse desejo em seu poema Fausto. Um homem faz pacto com o demônio para se tornar imortal e senhor e possuidor de tudo, como preconizou o filósofo francês René Descartes no século XVII.
O desejo de obras grandiosas se universalizou com a dominação ocidental de todos os continentes. O historiador Alfred Crosby explana em “Imperialismo ecológico”, seu mais conhecido livro, que a Europa criou dois tipos de colônia pelo mundo: as neo-Europas, colônias semelhantes à matriz, e as outras, que chamo de neo-Europas mestiças. O Brasil é uma neo-Europa mestiça. Ele foi fundado para ser explorado pela metrópole. Daí o grande contingente africano para trabalho escravo. As riquezas produzidas no país destinavam-se a Portugal. Hoje, a historiografia mostra que grande parte dessas riquezas ficava no Brasil.
Quanto ao pensamento também. Havia quem pensasse na colônia. As ideias circulantes na Europa chegavam em todo mundo. Um dos projetos fáusticos da Modernidade, na primeira metade do século XIX, era abrir canais de navegação. Vários autores escreveram sobre a importância dos canais para transporte de passageiros e de cargas.
No norte fluminense, o hidroviarismo contou com vários entusiastas. Na passagem do século XVIII para o XIX, o bispo campista José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho propôs, sem detalhes, a ligação de Campos a Macaé por um canal. José Carneiro da Silva, logo em seguida, escreveu memórias sobre a importância dos canais para a civilização e sobre a abertura do canal Campos-Macaé. O trabalho mais completo e mais atual sobre esse canal foi escrito por Ana Lucia Nunes Penha. Mais outros três foram construídos na região, embora um deles não fosse concluído.
Graças ao amigo Genilson Paes Soares, tive acesso a uma proposta à altura da megalomania da Modernidade no Brasil. Ela está na “Memória sobre canais e sua utilidade”, de José Silvestre Rebello, publicada no “Auxiliador da Indústria Nacional” de 1840. Depois de passar em revista os grandes canais do mundo (os de Suez e do Panamá ainda não haviam sido construídos). Ele propôs nada menos que a ligação de Porto Alegre a Belém do Pará por uma sequência de canais, batizando o conjunto com o pomposo nome de “Canal Imperial”. Ele escreveu na memória: “sempre me animo a descrever um canal imperial, que comunique a cidade de Porto Alegre no Rio Grande com a cidade de Belém na Província do Pará”.
Daí em diante, ele passa a descrever, em linhas gerais, o traçado dos vários canais que formariam o grande canal. O canal Campos-Macaé ainda não começara a ser aberto, mas ele reforça sua importância. Como originalmente foi concebido, o canal ligaria a baía da Guanabara a Campos. Daí, aproveitaria o canal do Nogueira e de Cacimbas. Se fosse construído, o canal imperial seria o maior e o mais caro do mundo, para, logo em seguida, ser substituído pela ferrovia, que seria substituída pela rodovia.
Por que a Modernidade é tão ambiciosa? Por que abrir um canal dessa magnitude? Bastava um pouco de humildade para perceber que uma tão grandiosa obra era desnecessária. Bastava olhar para o mar e dar-se conta de que existe uma hidrovia dada de graça pela natureza. Era só promover a navegação de cabotagem pelo mar para ligar todos os núcleos urbanos costeiros.
Até hoje, as grandes obras nos impressionam. Continuamos a desejá-las. O regime militar brasileiro construiu a rodovia Transamazônica ao lado do rio Amazonas, a maior via hídrica natural do mundo. Esses projetos e obras suntuosos estão nos arquivos ou sendo consumidos pelo tempo porque tudo que é sólido desmancha no ar.

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    Aristides Soffiati

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