Uma vida partida
07/03/2017 09:51
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 07 de março de 2017
(QUATRO MATEUSINHOS)
Uma vida partida
(Lion - Uma jornada para casa)
Edgar Vianna de Andrade
 
Toda criança pobre adotada por ricos num mesmo país ou em país diferente tem um drama de vida que daria um filme. Acontece que a maioria das pessoas que passou por essa experiência não escreveu sua história nem a narrou a alguém que a escrevesse. Saroo Brierley foi um dos poucos a registrar sua trajetória em livro. Ele nasceu na Índia, no seio de uma família pobre em que só aparecem a mãe, um irmão mais velho e uma irmã mais nova. A miséria na Índia é comum. O passado religioso convive com a modernidade sem manutenção. Assim, ao lado de homens e mulheres em seus trajes tradicionais e na prática de seus ritos, aparecem os trens, os famosos trens que transportam pessoas do lado de dentro e de fora, cortando todo o país.
A aldeia de Saroo está perdida dentro do subcontinente. Ele sai de casa para ajudar o irmão mais velho a ajudar na economia doméstica. Ele se perde do irmão e viaja muitos quilômetros de trem, escapando de situações perigosas. É muito comum vender-se crianças nos países pobres. É muito comum comprar-se crianças nos países ricos. Assim, Saroo (Sunny Pawar, quando criança, e Dev Patel, quando adulto) acaba parando na Austrália, adotado por um casal rico constituído por Sue (Nicole Kidman) e John (David Wenham). E lá cresce ao lado de um irmão também adotado e também indiano, mas “desajustado” no comportamento. Saroo também é um desajustado existencial.
Essa a história mostrada no filme dirigido por Gaeth Davis, roteirizado por Luke Davies a partir de relato do próprio Saroo, levado ao público pela luminosa fotografia de Greig Fraser e embebido na mágica música de Dustin O’Halloran. Fica difícil comentar apenas o filme sem descambar para observações sociológicas sobre a adoção. Normalmente, quem cede uma criança para ser adotada não tem condições de criá-la. Muitas famílias, porém, não querem se desfazer dos filhos, mantendo-os junto a si.
Por outro lado, o ocidente, que criou mais miséria que riqueza para pobres de outros continentes, é habitado por casais ricos que se consideram bem intencionados ao se oferecerem para adotar crianças pobres, negras, sujas, subnutridas das antigas colônias ocidentais. A trajetória de Saroo ilustra os dramas dessas crianças, que podem aceitar a adoção como forma de se livrar da vida de miseráveis, viver com serenidade após conhecerem seu destino ou se tornarem dividas como o caso de Saroo. Ele é uma criança nascida num meio de miséria, mas não preterido pela família. Sua sorte, porém, é parar nos braços de um casal australiano rico que lhe proporciona uma vida confortável e uma formação de nível superior.
Nada impedia o casal de ter seus próprios filhos. Mas, por opção política, ele quis ajudar os pobres. Renunciou aos próprios filhos para ajudar os carentes. O filme parece fazer a apologia da adoção, mas a mim me fez pensar sobre o drama deste instituto. O ocidente domina um país com cultura muito diferente da nossa, desmonta a estrutura social dele, aumenta as desigualdades, exacerba a miséria, produz crianças paupérrimas e oferece casais seus para adotá-las. Talvez fosse melhor nunca ter dominado esses países, sempre considerar que levava a desgraça para eles. A dúvida, no mundo ocidental, é uma atitude rara. Mesmo a dúvida sistemática, de Descartes, tem por fim acabar com as dúvidas.
E, no entanto, chama a atenção o contraste entre duas culturas. No ocidente, a vida é asséptica e privada. Na Índia, todas as dimensões da existência são socializadas. O grupo social participa da vida de um casal da fecundação à morte, passando pela criação dos filhos, iniciação religiosa, casamento e novamente o ciclo todo de vida. Talvez a passagem mais emocionante do filme seja a do reencontro da Saroo, com sua família verdadeira, na verdade com sua aldeia e com sua cultura. Alegria, barulho, festa é o que marcam esse encontro.
O filme quase consegue passar ao largo dos padrões hollywoodianos, mostrando uma forma de narrativa distinta da que conhecemos. O herói é um ser angustiado que nos incomoda.

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    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

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