Espírito pouco Santo
18/02/2017 21:51
Folha da Manha, Campos dos Goytacazes, 19 de fevereiro de 2017
Espírito pouco Santo
Arthur Soffiati
 
Não consigo entender e explicar a crise de segurança no Espírito Santo sem recorrer às raízes. A impressão superficial sentida pelas pessoas e passada pela imprensa é que a onda de saques e homicídios foi causada pela greve indireta da polícia militar do Estado.
Vejo a crise como tendo razões mais profundas. No mundo todo, com menor intensidade nos países ricos, e com maior, nos países pobres, o mundo está policializado. A palavra é mais significativa que policiado. Significa que a violência no mundo vive em situação de latência para aflorar quando a polícia não está presente. Credito este estado de violência latente à pobreza e ao individualismo.
O pensador que se tornou famoso tomando a violência como origem do Estado foi o inglês Thomas Hobbes. Como se sabe, ele pensou que, no início, reinava entre os humanos um individualismo exacerbado e uma violência descontrolada. Cada indivíduo lutava contra os outros pela sua vida. Daí a máxima: “O homem é lobo do homem”. Nessa perspectiva, a humanidade se aniquilaria. Esse impasse levou as pessoas a firmarem um contrato cessando a guerra de todos contra todo e fundando o Estado, que teria o monopólio da violência.
Pode-se supor que a situação de violência generalizada, o estado de natureza de Hobbes, corresponderia às primeiras sociedades humanas que, no século XIX, os primeiros antropólogos, com forte influência evolucionista, escalonaram em três estágios: selvageria, barbárie e civilização. Engels adotou essa linha evolutiva no seu livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”.
Hobbes viveu num tempo de violência. Entre 1642 e 1688, a Inglaterra mergulhou numa profunda guerra civil e num período de angústia que acabou na Revolução Gloriosa, com a vitória do Parlamento sobre o Rei. A violência influenciou Hobbes, que viu nela os males de uma conflagração prolongada. O estado de natureza seria a situação vivida pela Inglaterra por cerca de 30 anos. Não o estado original da humanidade, que Hobbes desconhecia e que Rousseau exaltava.
Selvageria denota uma condição vivida por quem mora na selva. Conota violência. Barbárie conota a condição de bárbaro, para os gregos, aqueles que balbuciam como crianças. Denota atraso e violência. Os dois substantivos induzem a percepções negativas. Índio é sinônimo de violento até mesmo para pessoas pobres. Ele é selvagem e bárbaro.
Na verdade, as sociedades vistas como selvagens (coletoras, pescadoras e caçadoras) ou bárbaras (agricultoras e pastoras) colocam o coletivo acima de tudo. O individual existe, mas não é valorizado. O social é tão forte que uma ofensa feita a um integrante da sociedade é uma ofensa ao grupo. Há guerras entre os grupos, mas elas são ritualizadas. Na verdade, tudo é ritualizado entre esses povos. Não há pobreza nem riqueza. Daí o estranhamento do velho índio tupinambá sobre herança, que Jean de Léry narra no seu livro. Daí a estranheza de índios americanos levados à França sobre as desigualdades sociais, narrada por Montaigne.
O princípio de solidariedade social permaneceu nas ditas civilizações. Leiam-se os “Atos dos Apóstolos”, no Novo Testamento, e tantos exemplos mais de interesses sociais suplantando interesses individuais. As profundas desigualdades sociais e o individualismo nasceram na civilização ocidental, mais especificamente a partir do século XV. As chamadas grandes navegações, a revolução científica e a revolução industrial criaram as grandes fortunas privadas e a noção de indivíduo e individualismo.
Atualmente, a humanidade está ocidentalizada e alcança cerca de sete bilhões de pessoas. As desigualdades sociais nunca foram tão desiguais como agora. Cerca de dez pessoas controlam riquezas correspondentes a quatro bilhões de indivíduos. Estamos na iminência de conhecer indivíduos triliardálios. Por outro lado, bilhões deles vivem abaixo da linha de pobreza. No Brasil, pessoas que experimentaram um padrão de renda de classe média baixa voltam a cair no estado de pobreza. O retorno à pobreza é pior do que a permanência no estado de pobreza.
A noção de solidariedade social e de coisa pública, por mais republicano que seja o mundo e que a república (de res=coisa pública) seja propagada pelo ocidente para outros países, o chamado mundo democrático não é democrático, mas plutocrático. Juntemos, então, pobreza, individualismo e falta de polícia. O resultado foi o que se viu no Espírito Santo. Em todos os estados vigoram condições para a explosão de saques e violência. Antigos pobres que se enriqueceram com o crime lutam contra os governos e fazem suas próprias leis. Os pobres não têm mais o que perder e aproveitam as condições para saquear.
Para mim, trata-se de um mundo intolerável, como disse o socialista-ecologista René Dumont, providencialmente esquecido pelos conservadores e progressistas. Eu gostaria de viver numa sociedade indígena. Ih, elas estão sendo destruídas por nós.

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    Aristides Soffiati

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