O Porto do Açu depois da prisão de Eike
08/02/2017 17:56
O Porto do Açu depois da prisão de Eike
Arthur Soffiati
 
No meu entendimento, a obra que mais impactou o ambiente e a sociedade no norte fluminense foi empreendida pela Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e pelo seu sucessor Departamento Nacional de Obras e Saneamento, entre 1935 e 1990. Os dois órgãos federais, atuando ao longo de tanto tempo e num espaço imenso, promoveram mudanças profundas no ambiente, transformando um pantanal numa área destinada à agropecuária e à agroindústria. O senso comum, contudo, não tem memória e não percebe a magnitude das alterações produzidas pelo trabalho de drenagem. O Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu (CLIPA) parece mais grandioso aos olhos do leigo e do estudioso porque é localizado no espaço e se desenvolveu em pouco tempo, além de estar voltado para o mundo globalizado.
Seja como for, ele jamais poderia se instalar numa restinga, a maior restinga do Estado, terreno novo, baixo, frágil, desprotegido, com uma vegetação ainda pujante, uma fauna compreendendo várias espécies ameaçadas de extinção e uma economia tradicional voltada para a produção de alimentos. A instalação de um porto, de um mineroduto ligando o Açu a Conceição do Mato Dentro (considerado o mais longo do mundo), um enorme estaleiro, a elevação do piso do terreno em seis metros em média e outros empreendimentos mais mudaram radicalmente a face da restinga e sua economia.
Originalmente, tudo ficou por conta do empresário megalômano Eike Batista, que foi recebido como redentor regional e aplaudido de pé pela população, por políticos e acadêmicos. Investigações associadas à Operação Lava Jato concluíram que o empresário pagou secretamente ao ex-governador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, a título de propina para obter facilidades, a astronômica quantia de 16 milhões e meio de dólares. Propina consiste em pagar valores altos para obter facilidades geradoras de valores mais altos ainda. Eike não negou, como tantos outros, ter pagado tamanha propina. Tanto ele quanto Sérgio Cabral estão presos. O CLIPA foi vendido ao Grupo Prumo Logística Global, que manteve Eike como sócio minoritário, como ele mesmo declarou em entrevista na TV. A quanto orçariam as facilidades que ele obteve no município de São João da Barra, tão distante para a grande imprensa brasileira? Quanto terá custado colocar a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio de Janeiro (CODIN), o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a Polícia Militar e a Justiça Estadual (embora esta última independente teoricamente do Poder Executivo) para fazer o serviço sujo de demolir a restinga e expulsar pequenos produtores de suas terras sob os termos jurídicos de desapropriação e indenização? As investigações devem-nos esta resposta. Estará a Prumo isenta de responsabilidades diretas? Indiretas, sabemos que não, por ter adquirido um bem com o vício de origem de seu antigo proprietário e por mantê-lo como sócio. As investigações devem continuar e devemos nos unir para cobrar das autoridades suas responsabilidades.
Enquanto não prosseguem, alguns problemas graves continuam existindo e se agravando no complexo. Passemos em revista os principais.
Mar. O complexo abriu dois largos, compridos e profundos canais submarinos para acesso de navios de grande calado. A areia retirada deles, segundo consta, foi em parte acumulada no fundo do mar e em parte depositada no continente para elevar o piso do terreno e permitir a instalação de um distrito industrial. Posteriormente, o Inea autorizou o aprofundamento desses canais, já estando o CLIPA sob controle da Prumo. A sociedade tem o direito de ser informada sobre essas obras de dragagem, de saber até que ponto elas têm base técnica sustentável, de saber em que medida as autorizações do Inea foram científicas e não políticas.
Costa. O que mais afetou a linha de costa da região foi a instalação de um grande estaleiro rejeitado em Santa Catarina e instalado no Rio de Janeiro pelo suspeito convite de Sérgio Cabral. Ele quebrou a linha de costa e seccionou a lagoa do Veiga em 300 metros de largura. Numa audiência pública, representantes das consultoras de Eike garantiram que a integridade desta lagoa seria respeitada. Não foi. Em que medida, a abertura de um largo e profundo canal afeta o teor de salinidade do lençol freático e do aquífero Emboré?
Outra questão ainda não devidamente estudada é o do transporte de areia de norte para sul e vice-versa, ou seja, o da erosão costeira. Depois dos espigões rígidos construídos como guias-corrente no canal de acesso ao estaleiro, espigões mais longos que os de Barra do Furado, eles começaram a reter areia ao norte e ao sul, sinal de que existem fortes correntes sul-norte-sul.
A Prumo se apressou a obter laudo técnico demonstrando sua inocência quanto à erosão que os moradores do Distrito de Açu constataram. Recorrendo aos préstimos do conhecido professor Paulo Rosman, da COPPE-UFRJ, muito respeitado nos meios acadêmicos, formulou ele um laudo simplório, demonstrando que a areia acumulada junto aos espigões nada tinham a ver com os processos erosivos do Açu. O mais grave é que este laudo se tornou oficial para a empresa e o Inea, desqualificando os laudos dos professores Marcos Pedlowski, da UENF, e Eduardo Bulhões, da UFF, excelente em sua demonstração ao Ministério Público Federal. Segundo Bulhões, em certa época do ano, a corrente marinha transporta areia para Gruçaí, ao norte do empreendimento. Em outra época, a corrente se inverte e devolve a areia à praia do Açu. Com os espigões, a areia fica retida tanto ao norte quanto ao sul.
Existe uma corrente que vem do norte até encontrar outra ao sul em Gruçaí. Em grande parte, esta corrente é responsável pelo avanço do mar e de areia em Atafona. Minha proposta, por estar desconfiado, é o estudo mais detalhado sobre a interferência que os espigões do Porto podem eventualmente estar causando a Atafona, além das constatações dos professores Pedlowski e Bulhões.
Quanto às operações do CLIPA no continente, algumas questões não estão devidamente esclarecidas:
Água. Inicialmente, anunciou-se que a água para operação do CLIPA proviria do rio Paraíba do Sul. Seriam 10 m3 por segundo para atender às necessidades empresariais. Depois, a informação divulgada pelo próprio empreendimento é que a água viria de Minas Gerais pelo mineroduto, em vazão tão formidável que superaria a do próprio rio Paraíba do Sul. Depois, passou-se a comentar que a água doce seria obtida no aquífero Emboré. O autor já ingressou com representação no Ministério Público Federal, mas, até o momento, a informação não foi obtida. Precisamos dela num portal de transparência.
Sal. Em que medida, a salinização da porção meridional da restinga foi aumentada pela retirada de areia para a abertura de canais? Ela foi detectada em poços e no canal do Quitingute. Terá ela aumentado na lagoa de Iquipari e em outros canais? Aguardamos resposta.
Canal auxiliar. Com a redragagem de canais do sistema São Bento, em 2009, com verbas do PAC e execução da Odebrecht, a COPPETEC-UFRJ concebeu um canal transversal ligando os canais de São Bento e Quitingute ao canal do estaleiro para auxiliar o escoamento de água excedente em caso de enchente. Contra todas as críticas a ele, Marilene Ramos, ex-presidente do Inea, foi grande entusiasta desse canal. Quem fim ele levou?
Vegetação. Com a instalação parcial do CLIPA, a ONG SOS Mata-Atlântica detectou um desmatamento corresponde a 31 campos de futebol em São João da Barra. Não há dúvida de que essa remoção da vegetação nativa de restinga se deve ao porto. Ela não foi compensada devidamente pela criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural da Caroara nem pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu, unidades de conservação que devem ser rediscutidas.
Fauna. A fauna nativa da restinga sofreu muito com a instalação do complexo, por mais que a propaganda enganosa das duas empresas responsáveis pelo empreendimento tenha mostrado seu cuidado com ela. Segundo a propaganda, os animais que perderam suas casas estariam sendo alocados na Caroara e no Parque do Açu. Não é bem isso o que ocorreu. Até os animais domésticos têm sofrido com o porto, que o diga Noêmia Magalhães, dona de um sítio no Açu.
Licenciamento. Todas as licenças dadas pelo Inea ao grupo X devem ser revistas. Qualquer bom cientista, e mesmo leigo, percebe que os empreendimentos previstos para o CLIPA são insustentáveis no seu conjunto. Os licenciamentos foram políticos e não técnicos. O complexo precisa de redefinição. Não vejo como expandi-lo mais com um distrito industrial que provoca problemas ambientais e sociais muito sérios. Não sei também onde caberia um corredor logístico com 400 metros de largura, ferrovia, rodovia, linhas de transmissão e dutos.
Questão Social. A questão que mais mobiliza os humanistas stricto sensu é a social. Sou sensível a ela porque os pequenos produtores rurais que se instalaram no Açu alcançaram um equilíbrio com o ambiente. Esse equilíbrio foi rompido pelo CLIPA. Nenhum sistema de produção tradicional do Açu causou tanto impacto quanto o complexo. Para que este se instalasse, houve muita injustiça social praticada pelo poder executivo estadual (e também federal) e pelo poder judiciário. Todos os processos de desapropriação devem ser revistos e cada produtor espoliado deve ser ressarcido com a devolução de suas terras e com indenizações devidas. O complexo não pode continuar a manter terras antes produtivas como reserva futura para expansão.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Aristides Soffiati

    [email protected]

    BLOGS - MAIS LIDAS