conto
17/02/2017 09:41 - Atualizado em 17/02/2017 09:41
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Recomeços
Cândida Albernaz
Pensou voltar em seus próprios passos até chegar ao ponto de partida. Não conseguia mais lembrar-se que ponto era esse. Onde começara tudo?
No chão de cimento que cobria o quintal de sua casa, costumava ficar sentada enquanto a avó lavava roupa no tanque. Ela contava histórias que dizia serem verdadeiras. Entre esfregar uma camisola ou reclamar da sujeira da roupa de algum neto, ia desfiando um mundo imaginário.
Sua avó era uma mulher forte e lavava algumas peças por prazer. Dizia que quando ela não estava ali pedindo que contasse histórias, pensava na vida.
Naquele mesmo quintal, recordava-se de uma discussão entre seu pai e sua mãe. Ela o acusava de estar se engraçando para a filha da vizinha e ele rindo afirmava que só tinha olhos para ela. Sua mãe não se convencia e ele tentou abraçá-la. A princípio o empurrou, mas depois chorou em seu ombro. Repetia que o amava e não queria perdê-lo. Um ano depois, seu pai largou a casa em que moravam e foi viver com aquela mesma moça que provocara a briga entre os dois.
Uma vagabundinha, segundo sua mãe.
O pai as visitava de tempos em tempos e por várias vezes pensou que ficariam juntos novamente. Principalmente quando ele saía de lá com o dia amanhecendo. Em algumas dessas vezes, ouvia sua mãe chorar sozinha.
Anos mais tarde, estava com amigas em uma festa e dois colegas de colégio resolveram disputar sua atenção. Riu com eles, mas tentou mostrar que não se interessava por nenhum dos dois. Pareciam não entender.
Elas moravam ali perto e foram embora caminhando. Numa das esquinas as meninas dobraram e ela seguiu em frente. Andou mais um pouco quando os dois apareceram. Não a deixaram prosseguir, e sem que pudesse falar qualquer coisa, um deles tapou sua boca com a mão enquanto o outro a segurava. Chorava e se debatia.
Antes que conseguissem completar o que desejavam, passou um homem de bicicleta. Ao ver a agitação, resolveu perguntar o que estava acontecendo. Os rapazes a soltaram e saíram correndo.
Nunca contou à mãe ou qualquer outra pessoa o ocorrido. Na escola, costumavam olhá-la com expressão de ameaça, mas nunca tentaram mais nada.
Não se casou e namorou pouco. Formou-se em veterinária e fazia o que mais gostava. Lidar com animais.
Conheceu Guilherme há dois anos. Num bar, numa conversa qualquer, num dia em que estava especialmente alegre.
Ela e Jane, sua amiga, saíram para comemorar. Ficara noiva e marcara a data do casamento. Sempre fora o sonho de Jane, uma casa, filhos, marido, rotina. Estava satisfeita pela amiga. Guilherme pediu para sentar com elas e conversaram durante toda a noite. Quando se despediram, ele tinha seu número de telefone. Ligou no dia seguinte.
Começaram a se ver, saindo sempre que podiam, até que um mês depois, ele próprio contou que era casado. Vivia mal, a mulher era uma chata ciumenta, não o entendia como ela, mal se relacionavam. Ia separar-se, precisava apenas de um pouco mais de tempo.
Dois anos e esse tempo não chegou. A mulher descobriu tudo e foi parar em sua casa. Ouviu o que ela tinha para dizer e sentiu pena quando pediu chorando que deixasse seu marido. Sentiu também por si mesma.
Em que parte da vida que planejara, aquilo tudo se encaixava? Não conseguia lembrar-se.
Quando a outra foi embora, virou-se e viu o retrato de sua mãe. Sabia que não era uma vagabundinha.
O telefone tocou. Resolveu não atender.
Pegou a bolsa que deixara sobre a mesa. Sabia que a clínica estava cheia. Era onde realmente sentia prazer, seu trabalho. Quantas vezes na vida recomeçara?

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".