Não era para se envolver
15/02/2017 04:56 - Atualizado em 15/02/2017 04:56
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Não era pra se envolver
Cândida Albernaz
- Te avisei mulher. Falei que era furada e você não levou fé. Agora tá aí, na maior neura.
- Não parecia ser nada disso.
- Então tá. E não fui só eu não. As meninas tentaram abrir seu olho e você nem aí. Tô indo porque tem cliente chegando.
- Espera um pouco.
- Espera coisa nenhuma. E acho bom dar um jeito nessa cara, porque a outra lá não quer
ver ninguém parado.
Fiquei no mesmo lugar por algum tempo e então fui ao banheiro. Clô tinha razão, precisava ajeitar porque estava parecendo um lixo. Molhei a mão na água da pia e passei no cabelo tentando domar os fios rebeldes que teimavam em não colar à cabeça. Droga de cabelo que nunca fica bom. Os olhos estavam vermelhos e inchados: culpa do choro e da insônia.
Afastando-me um pouco observei meu corpo. Um sorriso veio aos lábios: esse ainda estava bom apesar do vestido surrado que usava. Tenho um corpo bem feito o que faz com que algumas colegas morram de inveja. Como de tudo, e claro que ainda sou muito jovem, isso ajuda.
Os olhos encheram de lágrimas. Não queria começar a chorar novamente. Tinha que trabalhar ou dona Odete ia perceber que algo estava errado. Sempre fui uma das melhores.
A culpa de tudo era daquele idiota do Carlão. Desde os doze anos nessa vida e agora me deixei enganar. Abri a guarda, foi isso. E o desgraçado se aproveitou.
Tinha que apaixonar? Escolada do jeito que sou? Também, qualquer uma se enrolava. Ele chegou de mansinho com um corpo, que benza Deus!, tira qualquer uma do sério. Nem precisava pagar e fez questão de pagar dobrado. Voltou mais duas vezes e me escolheu. E o cheiro do cara? Sou ligada nesse negócio de cheiro. Sempre perfumado e sempre gostoso: caí de quatro.
Parei de cobrar e saí com ele algumas vezes fora do expediente. Sem que dona Odete imaginasse, é claro, porque com ela não tem papo. Só algumas meninas sabiam.
O problema começou aí: conversa vai, conversa vem, e ele me convenceu a entregar uma encomenda no centro. Na primeira e na segunda vez, deu tudo certo, ainda ganhei um extra. Falei com ele que não pedisse mais, porque tinha meu emprego e aquele negócio podia dar cadeia. Ele veio pegando, se esfregando e me deixando louca: não deu outra, falei que faria pela última vez.
Cheguei à casa do cara, era o mesmo de sempre, não sabia nem o nome dele, porque não queria me envolver. Entreguei o pacote e quando saí ainda na esquina, dois sujeitos me agarraram e colocaram num carro. A conversa foi ali mesmo. Depois de levar dois tapas na cara, mão pesada ele tinha, tirou sangue do meu nariz. Já apanhei antes, mas tenho pavor. Não tem essa de que com o tempo se acostuma. Que nada, detesto sentir dor. Queria o nome de quem me contratou. Estava metendo o nariz na área deles. Tentei dizer que não sabia e recebi um soco no peito, quase desmaiei. Mais dois murros e acabei soltando a língua.
Isso foi há dois dias. Carlão foi pego e apanhou tanto que parece ficará cego de um olho. O pior, é que soube quem foi e está atrás de mim.
- Tá dormindo no banheiro, Norminha?
Abro a porta e dona Odete fica me olhando com aquela cara de quem quer me ver na rua. Quando ela souber com o que estou envolvida, é pra lá que vou.
- Seu cliente preferido chegou. Tá meio quebrado e te procurando. Vai e faz com que ele esqueça as dores.
Entro no salão e Carlão está me esperando.
- Oi, Carlão.
- Oi, nada, sua cadela. Vamos até lá fora.
- Não posso sair agora.
- Pode sim, porque já molhei a mão de Odete e ela tá feliz da vida.
- Carlão, não tive culpa.
- Claro que não, os caras vieram pra cima de mim porque têm bola de cristal.
- Carlão, eles me machucaram. Você sabe que não aguento. E depois, a gente se ama.
- Se ama? E você acha que eu amo vadia?
- Que é isso? Quem são esses?
Três homens estavam dentro de um carro esperando por eles.
- Toma, é de vocês.
- Carlão, o que vão fazer comigo?
- Vai dar uma volta com eles. Já sabem, não quero que sobre nada.
- Carlão, eu te amo...

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".