Minutos
29/01/2017 10:33 - Atualizado em 08/02/2017 18:35
A cama continuava bagunçada. O lençol branco, ainda quente e desarrumado, sinalizava a recente partida da mulher. As luzes fracas do ambiente iluminavam os rostos. Semblantes aflitos espalhados pelo quarto, sala e varanda. No portão, um carro com as portas traseiras abertas aguardava a saída de homens vestidos de branco. Eles carregariam os últimos momentos da vida enclausurada, que espiara entre grades e janelas, mas permanecera alheia ao mundo que transcorria fora de seu espaço.
Mais cedo, naquele mesmo dia, um sussurro antecipou a despedida. Quase inaudível. Ao redor, somente memórias preenchiam os seus dias vazios de sentido. As horas transcorriam sem que pudessem ser percebidas. O relógio mostrava o passar de minutos à medida que seu tempo era o retrocesso. Regresso a um passado de marcas e memórias. Elas dominavam o presente e serviam para alimentar o futuro.
Por muitos dias, a mulher se sentou em sua sala de visitas. A cadeira, posicionada entre móveis escuros que ditavam as cores da casa, permitia que ela visse as fotos. O passado em destaque. Marido, filhos, netos. Dali, contabilizava perdas. Ali, morria a cada dia. Enquanto se sentava para reverenciar os bons momentos, escondia o aperto em seu coração. Conduzia os outros, os poucos chegados, para que não tivessem muitas informações sobre o presente. Recebia-os. Enquanto conversava, observava os retratos. Sempre distante da realidade. Em sua cabeça, dialogava com todos os representados por fotografias. Para a idosa, eles eram sua verdadeira companhia.
A mão direita segurava o copo de café. Um prato de bolo estava posicionado sobre o seu colo. Usava um vestido preto. O barulho dos carros, que transitavam em alta velocidade pela rua onde morava, não era capaz de atingir seus ouvidos. Por eles, entravam apenas as músicas de bailes de Carnaval pelos quais passou com o marido. Com quem dançou e comemorou os anos, os filhos, a vida. Para quem se doou e por quem se tornou alheia as dores do mundo.
Concentrada, observava seu retrato. Sentia saudade. Tantos anos que partira, mas sempre parecia ontem. Há poucos minutos. Dizem que o tempo cura tudo. Mas, para ela, apenas exercera o poder de aquietar o coração para que aguardasse o fim de espaçados tic-tac-tic-tac-tic-tac.
Levou o copo à boca. O calor aqueceu seu corpo. Levantou-se, com certa dificuldade, e caminhou para a cama. Era uma tarde de sábado. Mais uma. Uma a mais. Só uma. O corpo cansado. Deitou-se. A cama não estava bagunçada. O lençol branco, frio e esticado, estava preparado para o momento do repouso. Fechou os olhos. Histórias em câmera lenta transmitidas em uma tela inalcançável. Seria capaz de reproduzir os diálogos se sua boca respeitasse a vontade. Tentou emitir sons. Precisava contar aos demais que sua vida ainda existia.
Seus dedos eram tocados por ele. Os sorrisos recíprocos. Ele retornara para ela. Agora, sem adiar mais um minuto, se levantaria para preparar o prato de alface e tomate com bife de que tanto gostava. Ou mingau.
As pernas bagunçavam a roupa de cama. Os movimentos não coordenados. Tentou se levantar. O peso sobre o peito. As mãos perto das dele. Os olhos pousados em seu corpo, que não se mexia em conformidade com os pensamentos.
As pernas agitadas.
Os pés frios.
O prato de salada.
O mingau.
Ele.
O peso no corpo.
Ele.
O sussurro.
Ele.
O suspiro.
Eles.
A cama bagunçada.
O lençol branco, quente e desarrumado.

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    Paula Vigneron

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