Mulheres ficcionistas em 2016
28/01/2017 19:44 - Atualizado em 28/01/2017 19:44
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 27 de janeiro de 2017
Mulheres ficcionistas em 2016
Arthur Soffiati
Em 2016, mais uma vez destacou-se Elvira Vigna com seu romance “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (São Paulo: Companhia das Letras). Conta, na autora, a postura ácida diante da vida e sua peculiar forma de narrar. Seu estilo circular é uma forte marca. Na sua inteireza, a história aborda as recordações de uma mulher meio masculinizada, talvez ela mesma, sobre um colega de trabalho viciado em sexo com prostitutas. Ele era casado mas não conseguia evitar as mulheres. Cada uma delas parecia ser a mesma, como um palimpsesto raspado várias vezes para ser reescrito. Assim eram os pergaminhos da antiguidade. Cada puta parecia a mesma puta em qualquer lugar. Mas em Vigna nada é linear. A integridade da narrativa é cortada em partes, dispersas como peças de um quebra-cabeças dispostas em capítulos que não seguem uma narrativa linear. Pelo contrário, o tempo-espaço está fragmentado e espalhado. Cabe ao leitor montar o todo. No final, como costuma acontecer nos romances de Vigna, há um desfecho cruel.
Beatriz Bracher foi elogiada pela crítica e premiada por “Anatomia do paraíso” (São Paulo: Editora 34). Anoto que, apesar da crítica favorável, ela teve dificuldades em construir os personagens. É quase um triângulo amoroso entre Félix, Vanda e Maria Joana. Félix veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro com o fim de fazer mestrado sobre o poeta inglês Milton. Ele é branquela, epilético e bissexual. É grande seu conhecimento de Milton para um rapaz de 24 anos que nunca tem contato com seu orientador e sua universidade. Seu computador não funciona há muito tempo. Escreve à mão. Vive da leitura do “Paraíso perdido” numa tradução para o português do século XIX e no original. Desconhece outras traduções e os comentadores do autor.
Vanda, uma das mulheres de sua vida, talvez a principal, é negra, de origem pobre, trabalha no Instituto Médico Legal e numa academia. No entanto, é capaz de reflexões psicológicas avançadas para qualquer pessoa da sua condição social e da sua escolaridade. É ateia. Está grávida, provavelmente de Félix, mas não revela quem é o pai da criança. Sua grande força está em assumir a filha sozinha e lutar para ser médica. Sua irmã, Maria Joana, é uma adolescente, filha de outro pai com a mesma mãe. É inteligente e propensa à cultura, pois se apaixona por Félix e por Milton. Poder-se-ia admitir que seu interesse por Milton é superficial e se explica pela paixão adolescente por Félix.
O triângulo amoroso é perturbado por outros personagens. Oneida, já madura, é dona da lanchonete frequentada por Félix, que mora sozinho num pequeno apartamento em Copacabana. Nildo é um tenente do Exército, com quem Félix tem relações sexuais, mas que logo é dispensado do romance e mandado para o Haiti. Bianca, uma faxineira adolescente que também mantém relações sexuais com Félix, só aparece uma vez.
O romance transcorre no Rio de Janeiro ao longo de quatro estações, o que parece postiço numa cidade em que só se identificam calor e menos calor. A linguagem é comportada. Verbos no pretérito mais que perfeito, quando podem ser usados em outro tempo. Relaciona ao final as citações dispersas ao longo do livro, inclusive com bibliografia.
Félix anda a esmo pelo bairro, presenciando cenas de pedofilia e excitando-se sexualmente a ponto de se masturbar. Assiste a um idoso sofrendo abuso sexual e nada faz. Na verdade, Milton está presente do princípio ao fim com sua poesia. Parece que a paixão é da autora e não de Félix. Milton parece ser o grande personagem.
Depois de “Quarenta dias” (Rio de Janeiro: Objetiva, 2014), a freira escritora Maria Valéria Rezende, volta com “Outros cantos” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016). Como em seu livro anterior, ela cria um personagem, certamente ela mesma, fora e dentro do lugar. A consagrada autora parte de um bom tema. Quarenta anos depois, ela volta a Olho d’Água, lugarejo em que iniciou sua vida de professora pelo Mobral. A personagem Maria viaja de leste para oeste. Ela saiu do lugarejo por razões políticas durante a vigência da ditadura militar. Viajou ao México e ao Saara na Argélia, lugares que lhe servirão de referências nas suas comparações com o sertão nordestino. Quarenta anos remete ao título do romance “Quarenta dias” e a um número bíblico, ligando a autora a sua condição de freira.
O romance avança em cortes. Um capítulo narra a viagem com suas paradas e andanças num ônibus em direção a Olho d’Água. O capítulo seguinte aborda suas lembranças do lugarejo. “O sertão não é mais sertão e ainda não virou mar” As casas sertanejas encheram-se de trastes e abandonaram aquela estética do essencial, minimalista, diriam hoje, que me encantava na minha casinha e em todas as outras de Olho d’Água?”, pergunta-se durante a viagem.
Maria Valéria mostra, ao longo do romance, a tensão entre passado e presente, entre o antigo e o moderno, como Ronaldo Correia de Brito. A integridade do sertão, mesmo com suas perversidades, foi estilhaçada. Essas perversidades eram a condição feminina, com maridos tendo o direito de espancar as esposas sem nenhuma interferência externa, e a autoflagelação coletiva de homens por motivos religiosos. Maria se sentia na Idade Média. Era uma citadina extraviada no sertão. Mas ela não relata como é o novo sertão, como faz Correia de Brito. Ela não chega ao lugarejo de seu passado, que está na sua memória. O novo está na sua imaginação. Talvez seja uma técnica ficcional: deixar o lugar em suspenso para o leitor.
Os contos que Adriana Lisboa reúne em “O sucesso” (Rio de Janeiro: Alfaguara) toma o título de um conto para título do livro. O conjunto me deu a incômoda impressão de que certos autores têm de publicar ao menos um livro por ano, assim como compositores e cantores devem lançar um novo disco anualmente, para estar em voga. São nove contos ao todo, vários já publicados separadamente, outros inéditos. O primeiro deles “O enforcado” parece novela de TV. O pai se apaixona pela filha sem saber. No final, a filha lhe faz a revelação. “Circo Rubião” é, sem duvida, uma homenagem a Murilo Rubião, mas, nos esclarecimentos, nenhuma referência é feita ao contista mineiro. Salva-se o conto “O escritor, sua mulher e o gato”, homenagem ao intelectual francês André Gorz e sua mulher Dorine. No mais, são contos frouxos.
Tentei ler semanalmente as crônicas de Tati Bernardi na Folha de São Paulo. Concluí logo que ela tem um único personagem: ela mesma. O que está no centro de suas crônicas e do seu primeiro romance é ela, suas doenças, seus remédios, suas fobias, seus toques, o mundo ao seu mais próximo redor. Seu primeiro romance, “Depois a louca sou eu” (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), é, sem dúvida, autobiografia de uma pessoa fútil. A pretexto de ser autêntica, ela vomita (na vida real, adora escatologia). Creio até que os capítulos do livro são crônicas suas expandidas. Em raros momentos, ela consegue sair dos seus problemas para observar o mundo a sua volta. Dir-se-á que muitos autores partiram de si para escrever. O caso mais célebre que me ocorre agora é Proust. Mas convenhamos, Proust parte de uma xícara de chá com madeleine para descobrir um fabuloso mundo esquecido. Ao fim da leitura de Bernardi, tem-se a sensação de que ela escreveu seu primeiro e último romance, já que parece não conseguir construir um personagem que não seja ela mesma.

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    Aristides Soffiati

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