O corpo solidário
19/01/2017 12:45 - Atualizado em 19/05/2020 15:01
Recebeu a notícia pelo telefone. Sem rodeios e com poucas palavras, soube que o marido estava morto.
flores
flores / Mariana Luiza
Não se falavam há oito anos, embora ainda dormissem juntos, dividindo a mesma cama e compartilhando o único virol. Era uma mulher de constância ansiosa e muito nervosa, porém contrariando as previsões e os costumes demandados pela situação, ela recebeu a notícia com a calma dos equilibrados. Desligou o telefone, caminhou até o quarto. Pegou no armário, uma muda de roupa do marido e deixou-a sobre a cama. Tomou um demorado banho quente, escovou os cabelos e sentada na cama, antes de se vestir, limpou o lixo da bolsa jogando fora recibos de compras do cartão de crédito, papel de bala e bula do remédio para sinusite que tomara no mês passado. Duas horas depois, saiu com a muda de roupa do marido nas mãos.
O corpo já estava frio e vestido com uma camisa social amarela e calça de linho branco. Presente dado por ela, quando ainda se falavam. Roupa que ele nunca vestira em vida. Odiava amarelo e o inevitável amarrotar do linho. Ela, escorpiana e filha de Oxum, amava o dourado reluzente e os vincos de uma calça bem passada. Amava ainda mais o prazer da longínqua vingança silenciosa. E como morto não opina, não amarrota e nem muito menos desfruta de qualquer prazer carnal, resolveu agradar a si mesma escolhendo o que segundo ela, lhe caía bem. 
Cobriram-no de flores do campo. Todas brancas. Deixando apenas parte do dorso e a cabeça descoberta. O relógio avançava contando as horas para o fim do velório. E ela aguardava sozinha pelo sepultamento do corpo. Não avisou a nenhum amigo ou parente do morto. Queria apenas para si aquela derradeira despedida.
E sozinha começou a desflorar o caixão revelando pouco a pouco aquele corpo rijo que ainda guardava o sofrimento do último suspiro. As mãos fechadas, os dedos dos pés contraídos. Morreu segurando entre os dedos a dor acumulada na vida. Ela acariciou aquele corpo com a intimidade que nunca tiveram enquanto vivos. Nem nos primeiros anos do casamento quando ainda faziam sexo com uma certa frequência, o amor e o desejo eram latentes, mas a intimidade quase que inexistente.
Tirou as flores que cobriam os punhos fechados. Abriu os dedos com um pouco de força, na tentativa de dissipar aquela dor. Queria que a alma, quando chegasse no purgatório, já estivesse livre do sofrimento que aquelas mãos teimavam e guardar consigo. Não teve muito sucesso. A mansidão é a primeira a abandonar o corpo morto. 
O chão da capela estava coberta de flores do campo. Ela liberou os pés retirando os sapatos e as meias. Livrou os ouvidos do algodão que tapava todos os orifícios. Chegou perto do cadáver e disse-lhe todas as palavras de carinho e compaixão que foi incapaz de dizer nos últimos oito anos em que dormiram juntos sem se falar. 
Retirou o algodão da boca na esperança da última resposta, ao qual ela considerava ter direito. Mais uma vez, sem sucesso, viu o corpo ainda rijo repousado sobre o caixão, sem sinal de descanso eterno ou momentâneo. Um corpo abandonado e convalescente da dor que alma foi incapaz de carregar sozinha para o purgatório.
Como de costume, sentiu culpa pela dor que o companheiro carregou para o túmulo. Pensou em ir á casa buscar outra muda de roupa, ligar para os amigos do bilhar. Mas fora informada pelo coveiro que não havia mais tempo.
Apenas ela e o coveiro se despediram do corpo. Outros funcionários do cemitério carregaram o caixão até a urna vertical. A mais barata. Uma torre de cadáveres sepultados lado a lado, como caixas de sapato em almoxarifado de loja de shopping. A culpa ficava mais forte a cada pá de cimento jogada pelo coveiro para fechar a tampa. Depois de sepultado, ela ainda se sentou no meio feio perto do túmulo e fez companhia ao corpo por duas horas. Pensou no namoro, nos poucos bons momentos que viveram juntos. Lembrou-se de alguns momentos dos primeiros anos do casamento. O fusquinha 69 que enguiçou na viagem a caminho da Lua de Mel, em Cabo Frio. Os dois fazendo sexo no carro enquanto esperavam pelo mecânico. Os jantares caprichados com diferentes tipos de acompanhamento. Arroz, feijão, carne, farofa, uma verdura refogada e legumes cozidos. Lembrou do nascimento dos filhos. Dos natais em família. Por duas horas, chorou copiosamente com tamanha nostalgia da felicidade que fora sua vida ao lado daquele homem.
Esqueceu-se das brigas que os levaram a oito anos de silencio absoluto. Esqueceu-se de que embora os primeiros anos do casamento fosse bom, e que o sexo era constante, ela nunca tivera um orgasmo.  Nunca se sentira íntima do marido para lhe contar pequenos segredos ou grandes fantasias sexuais. Tudo isso, em nome da culpa, ela esqueceu. Abortou do corpo e da memória. E em nome da solidariedade e companheirismo jurados diante de um padre há mais trinta anos, adquiriu artrite reumatóide nas mãos e pés e morreu dez anos depois com a mesma rigidez e dor herdada do companheiro desde o dia de sua morte.

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    Mariana Luiza

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