Consulta para quem?
Cândida Albernaz
Os dois chegaram juntos e isso só era perceptível porque enquanto um se dirigia para a cadeira e sentava, o outro ia direto para a secretária atrás do balcão entregando o cartão do convênio e falando:
- Meu marido tem hora marcada com o doutor. Ele já chegou?
Com a resposta afirmativa e após passar todos os dados do marido que permanecia sentado folheando uma revista, pegou ela também uma e começou a ler um artigo.
- Quando chegarmos lá dentro vê se não fica falando por mim. Não interessa ao médico o que você pensa, disse ele.
Ela continuou lendo. O conhecia bem. Era muitos e muitos anos de casados, fora a eternidade do namoro. Sabia quando queria iniciar uma discussão.
- Está se fazendo de surda, mas sei que me ouviu. Não adianta dizer que bebo muito. Isto é um ponto de vista seu. Bebo pouco, só para relaxar.
Virou a página da revista e contou até dez. tinha pleno conhecimento onde esta conversa dele iria parar.
- Ah! Outra coisa: quando ele quiser saber se como doce em excesso, sal ou gordura, não se meta a descrever a alimentação saudável que tenta me empurrar todo dia e que segundo você, não permito. Não vá começar com sua ladainha.
- Senhorita, por favor, ainda vai demorar muito para o doutor atendê-lo?
A secretária, que não tinha como não ouvir o monólogo do paciente, apressou-se a sorrir e responder que não, logo seriam chamados para entrar.
Ela deixou a revista na mesinha ao lado e pegou sua agenda. Aproveitaria para fazer algumas anotações.
Ele levantou-se para beber água e na volta parou na janela de onde se viam prédios e mais prédios.
- Olhe esta cidade! Quase não tem árvores, estão acabando com tudo e você lá em casa não cuida direito do jardim que eu mandei plantar. Está deixando tudo morrer esturricado...
O doutor abriu a porta despedindo-se do senhor que havia sido consultado e cumprimentando o casal pediu que entrassem.
Dentro da sala iniciou as perguntas de praxe:
- E então, o que o traz aqui?
- Rotina. Vim fazer um check up para ver se continuo em forma. Sabe como é, a idade vem chegando, os ossos doem, diminui um pouco a disposição... Explicava e sorria.
- Vamos dar uma olhada e se preciso, pedimos alguns exames.
- Veja doutor, gostaria de caminhar, viajar. Mas mal tenho tempo. Três filhos e mulher gastando muito. Preciso trabalhar e não me sobra tempo.
A esposa a seu lado, colocou os dois dedos indicadores apertando o interior dos olhos e abaixou a cabeça.
- Como é sua alimentação?
- Como de tudo. Pouco, é claro.
- Gordura, sal, doce. Controla bem?
- Com certeza. Não deixo de comer, mas com moderação.
- Hum! A mulher resmungou ao lado.
- Acho que sua esposa não concorda com o senhor.
- Ela é assim mesmo. Implica com tudo o que faço, como ou bebo. Quando a pessoa é insatisfeita consigo mesma, age assim.
A mulher levantou-se. Parecia uma bomba prestes a explodir
- Mentira! Tudo mentira. Ele se excede no sal, como fritura quase todos os dias e bebe até dizer chega! é ansioso, irritado, discute com todos e não aceita a opinião de ninguém. O senhor tem que dar um jeito nele.
Sentou-se novamente e ficou em silêncio. Quando olhou o médico, percebeu o que estava pensando. Talvez fosse ela quem necessitasse de ajuda.
O marido abaixou a cabeça colocando as mãos entre as pernas.
- Está entendendo o que digo? Ela é desse jeito, mal me deixa falar. Quanto mais ter sossego! Todo dia é discussão atrás de discussão. Doutor, sabe quando foi a última vez que ela disse que me amava? Acho que nunca.
- Como é que é?! Esta se fazendo de pobre coitado! Nunca me disse isso também. Ele é quem procura discutir todos os dias. E quando bebe então?
- Quase não bebo doutro. Só nos fins de semana porque ninguém é de ferro.
- Mas também é sexta, sábado e domingo bêbado. De segunda a quinta ele se controla porque caso contrário perde o emprego.
- Procure se acalmar. Talvez fosse melhor que eu desse uma olhada na senhora também. Venha, deite-se aqui para que eu possa examiná-la.
Deitou-se na maca e notou a troca de olhares cheios de cumplicidade entre os dois. Quando percebia, já havia entrado no jogo dele e a louca era ela.
Não abriu mais a boca. Quando acabou, ele pediu que o marido deitasse e procedeu com o exame, agora nele. Viu que o marido mantinha no rosto uma expressão compreensiva para com ela.
Na saída, depois do exame clínico, o doutor acompanhou-os a porta.
- O senhor me parece bem. Vamos aguardar o resultado dos exames que pedi. A senhora, não se esqueça de tomar o remédio de pressão que lhe passei e aceite minha sugestão de procurar um terapeuta. Vai ajudá-la a ser menos tensa.
Saíram os dois juntos. Na rua, ele coloca a mão em seu ombro e com cinismo diz:
- Viu querida, não disse que não tinha nada? Basta que fique sempre calminha e não se meta no que como ou bebo. Não entendo porque fica tão tensa, afinal sou um bom marido para você.
O olhar que ela lançou era de morte, mas ficou quieta, sabia onde este comentário poderia dar.