Consulta para quem
candida 10/11/2016 04:37
14021743_10209420641500361_7026746198745915723_nConsulta para quem? Cândida Albernaz Os dois chegaram juntos e isso só era perceptível porque enquanto um se dirigia para a cadeira e sentava, o outro ia direto para a secretária atrás do balcão entregando o cartão do convênio e falando: - Meu marido tem hora marcada com o doutor. Ele já chegou? Com a resposta afirmativa e após passar todos os dados do marido que permanecia sentado folheando uma revista, pegou ela também uma e começou a ler um artigo. - Quando chegarmos lá dentro vê se não fica falando por mim. Não interessa ao médico o que você pensa, disse ele. Ela continuou lendo. O conhecia bem. Era muitos e muitos anos de casados, fora a eternidade do namoro. Sabia quando queria iniciar uma discussão. - Está se fazendo de surda, mas sei que me ouviu. Não adianta dizer que bebo muito. Isto é um ponto de vista seu. Bebo pouco, só para relaxar. Virou a página da revista e contou até dez. tinha pleno conhecimento onde esta conversa dele iria parar. - Ah! Outra coisa: quando ele quiser saber se como doce em excesso, sal ou gordura, não se meta a descrever a alimentação saudável que tenta me empurrar todo dia e que segundo você, não permito. Não vá começar com sua ladainha. - Senhorita, por favor, ainda vai demorar muito para o doutor atendê-lo? A secretária, que não tinha como não ouvir o monólogo do paciente, apressou-se a sorrir e responder que não, logo seriam chamados para entrar. Ela deixou a revista na mesinha ao lado e pegou sua agenda. Aproveitaria para fazer algumas anotações. Ele levantou-se para beber água e na volta parou na janela de onde se viam prédios e mais prédios. - Olhe esta cidade! Quase não tem árvores, estão acabando com tudo e você lá em casa não cuida direito do jardim que eu mandei plantar. Está deixando tudo morrer esturricado... O doutor abriu a porta despedindo-se do senhor que havia sido consultado e cumprimentando o casal pediu que entrassem. Dentro da sala iniciou as perguntas de praxe: - E então, o que o traz aqui? - Rotina. Vim fazer um check up para ver se continuo em forma. Sabe como é, a idade vem chegando, os ossos doem, diminui um pouco a disposição... Explicava e sorria. - Vamos dar uma olhada e se preciso, pedimos alguns exames. - Veja doutor, gostaria de caminhar, viajar. Mas mal tenho tempo. Três filhos e mulher gastando muito. Preciso trabalhar e não me sobra tempo. A esposa a seu lado, colocou os dois dedos indicadores apertando o interior dos olhos e abaixou a cabeça. - Como é sua alimentação? - Como de tudo. Pouco, é claro. - Gordura, sal, doce. Controla bem? - Com certeza. Não deixo de comer, mas com moderação. - Hum! A mulher resmungou ao lado. - Acho que sua esposa não concorda com o senhor. - Ela é assim mesmo. Implica com tudo o que faço, como ou bebo. Quando a pessoa é insatisfeita consigo mesma, age assim. A mulher levantou-se. Parecia uma bomba prestes a explodir - Mentira! Tudo mentira. Ele se excede no sal, como fritura quase todos os dias e bebe até dizer chega! é ansioso, irritado, discute com todos e não aceita a opinião de ninguém. O senhor tem que dar um jeito nele. Sentou-se novamente e ficou em silêncio. Quando olhou o médico, percebeu o que estava pensando. Talvez fosse ela quem necessitasse de ajuda. O marido abaixou a cabeça colocando as mãos entre as pernas. - Está entendendo o que digo? Ela é desse jeito, mal me deixa falar. Quanto mais ter sossego! Todo dia é discussão atrás de discussão. Doutor, sabe quando foi a última vez que  ela disse que me amava? Acho que nunca. - Como é que é?! Esta se fazendo de pobre coitado! Nunca me disse isso também. Ele é quem procura discutir todos os dias. E quando bebe então? - Quase não bebo doutro. Só nos fins de semana porque ninguém é de ferro. - Mas também é sexta, sábado e domingo bêbado. De segunda a quinta ele se controla porque caso contrário perde o emprego. - Procure se acalmar. Talvez fosse melhor que eu desse uma olhada na senhora também. Venha, deite-se aqui para que eu possa examiná-la. Deitou-se na maca e notou a troca de olhares cheios de cumplicidade entre os dois. Quando percebia, já havia entrado no jogo dele e a louca era ela. Não abriu mais a boca. Quando acabou, ele pediu que o marido deitasse e procedeu com o exame, agora nele. Viu que o marido mantinha no rosto uma expressão compreensiva para com ela. Na saída, depois do exame clínico, o doutor acompanhou-os a porta. - O senhor me parece bem. Vamos aguardar o resultado dos exames que pedi. A senhora, não se esqueça de tomar o remédio de pressão que lhe passei e aceite minha sugestão de procurar um terapeuta. Vai ajudá-la a ser menos tensa. Saíram os dois juntos. Na rua, ele coloca a mão em seu ombro e com cinismo diz: - Viu querida, não disse que não tinha nada? Basta que fique sempre calminha e não se meta no que como ou bebo. Não entendo porque fica tão tensa, afinal sou um bom marido para você. O olhar que ela lançou era de morte, mas ficou quieta, sabia onde este comentário poderia dar.  

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    Sobre o autor

    Candida Albernaz

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    Candida Albernaz escreve contos desde 2005, e com a necessidade de publicá-los nasceu o blog "Em cada canto um conto". Em 2012, iniciou com as "Frases nem tão soltas", que possuem um conceito mais pessoal. "Percebo ser infinita enquanto me tornando uma, duas ou muitas me transformo em cada personagem criado. Escrever me liberta".

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