O Tempo de Um Dia Triste
Nino Bellieny 02/11/2016 18:55
__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ NinoBellieny Antigamente não havia um Dia de Finados que não chovesse. O calor brotava das pedras e irrigava a roupa do povo misturando suor e lágrimas. Ao anoitecer, o infinito carregado desabava. Choviam de uma só vez todas as lembranças . Até mesmo quem não tinha um parente morto mais chegado, chorava. As velas derretidas nas vielas do campo santo, formavam montículos brancos acizentados, ardendo até a última meada do pavio. As rádios tocavam músicas instrumentais fúnebres, os locutores falavam com pesar, não era permitido nenhum sinal de alegria nas casas, nas ruas cheias de gente a caminho do cemitério. Na pequena Morro do Côco dos Anos 1960, de quase 1.500 casas de grandes famílias, poucas não tinham uma dor para se lamentar. Crianças natimortas eram centenas por ano. Passavam em féretros solenes, puxados pelos irmãos mais velhos, descalços a maioria e dentro de uma caixa de sapatos o maninho cuja luz do mundo não batizara os olhos. A gente ia aos velórios ver crianças de todo o tipo, inertes em seus cachinhos como a lourinha dos olhos azuis da parte baixa da rua em que me criei. A mosca rondando a sua testa era a minha maior preocupação em meus 3 anos de idade. Ninguém fazia nada, a mosca continuava a pousar e decolar e eu aflito de nada poder fazer. Me acostumei com outras dezenas de visitas da morte nos bairros ao redor e tive a bênção de nunca tê-la visto entrando pela porta da minha casa e levado um dos meus irmãos. Mas a ladina chegava e o som de seus passos era traduzido na voz das mães a chorarem em desespero pelas ruas, do alto-falante da Igreja Católica a miar dentro da tarde o aviso tristonho. Nem precisava ser parente. A dor nos unia, vinda de uma única facada. E o céu se escurecia. Sempre se escurecia. Não me lembro de uma única morte, fosse de criança ou de adulto, em que as nuvens não se carregassem imediatamente formando espessas camadas de algodão triste. 03 No Dia de Finados era a soma disso tudo. Todas as crianças louras, negras, morenas, todos os adultos cujos nomes eram precedidos de "seu"ou "dona", mortos até então , voltavam de onde estavam para nos lembrar que os próximos seríamos nós. Não havia estranheza nisso, era simples como despertar, ficar acordado durante o dia e à noite adormecer. Morrer era comum, um comum assustador. E brincávamos com ela achando que a manteríamos sob controle. A incontrolável nunca deixou de vir. Os bares, açougues, lanchonetes e armazéns cerravam as portas, dependendo ou não da importância do defunto. Bastava ouvir as pisadas arrastadas e o murmúrio dos que carregavam o caixão e corriam-se todos a fechar os estabelecimentos. Bailes e festas eram adiados. A comunidade mergulhava no luto. Ninguém sorria, a música fugia e o silêncio se incrustava nas paredes. Famílias inteiras usavam a cor preta nas roupas durante anos e anos a fiar seus queridos mortos em lembrança total. Do meu tempo de menino aos dias de hoje a morte transformou-se em um espetáculo qualquer, quantificado em acessos a blogs, sites e páginas. Durante dois dias ocupa todos os espaços, mas não interrompe festas e não muda a percepção do clima. Em alguns casos é marketing a estimular vendas de discos, vídeos e livros. Para quem a experimenta no âmbito familiar, no entanto, ela continua avassaladora. Nem mesmo os muitos anos de ausência daquele que se fez mais querido depois da partida sempre surpreendente, conseguem aplacar a dor, punhal invisível enterrado fundo na carne doendo somente quando se lembra. E como deixar de lembrar?

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