As Regras da Fofoca na Política
Nino Bellieny 29/06/2016 13:06
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ O texto a seguir é um trabalho científico, porém de fácil entendimento e esclarecedor sobre a fofoca no campo político. Vale ler. BNB   F7   Você sabia? As regras da fofoca na política na comunicação política1.    

Elias Evangelista Gomes2

Universidade Federal de Alfenas Resumo: Quais são as estratégias de socialização desenvolvidas pelo marketing político brasileiro? Considerando uma questão central, foi realizada uma pesquisa etnográfica que articulou quatro esferas de dados, a saber: observação em campanha eleitoral, análise de programas de televisão do Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita (HGPE), entrevistas com importantes consultores políticos, análise de livros produzidos pelos consultores. Em síntese, a comunicação tem como objetivo refletir sobre a presença do estilo da fofoca nas eleições. A partir de um caso aparentemente particular ocorrido na Paraíba em 2010, quando um candidato a governador foi acusado de ter um “pacto com o diabo”, é possível pensar, conforme a ótica da antropologia, algumas regras do uso da fofoca na política. Isto é, refletir sobre os modos de classificar, julgar e agir relacionados a elementos das culturas. Não se trata apenas de propaganda positiva ou negativa, mas de um estilo próprio de narrativa que discursa sobre os indivíduos, as instituições e os seus vínculos com valores, sentidos e interesses sociais, políticos e culturais.     F1 Apresentação
  • Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional de Comunicação Política e Estratégias de Campanha da Associación Latinoamericana de Investigadores en Comunicación Política realizado, entre 17 e 19 de setembro de 2015, em Belo Horizonte – MG.
  • Elias Evangelista Gomes é professor efetivo do curso de ciências sociais do Departamento de Ciências Humanas do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (DCH/ICHL/Unifal-MG) e desenvolve pesquisas na interface entre sociologia e antropologia com foco nas comunicação política e processos socializadores. [email protected]
  • Durante o período eleitoral de 2012, o pesquisador foi a eventos de algumas campanhas em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro com o intuito de ampliar as problematizações dos dados.
Esta trabalho é resultado de uma pesquisa que teve como objetivo discutir as estratégias   de   socialização   da   comunicação   política   e   o   papel  ocupado   pelos consultores de marketing político responsáveis pelas coordenações de importantes campanhas no Brasil. Foi realizado um trabalho de campo etnográfico em uma campanha para prefeito na cidade de Belém do Pará no ano de 20123; realizadas entrevistas   com   cinco consultores  de  comunicação  política,  experientes em campanhas majoritárias para presidentes, governadores, senadores e prefeitos; foram analisados livros escritos por alguns deles e programas eleitorais do HGPE de seis consultores brasileiros. Em suma, trata-se de um trabalho de campo multissituado que buscou problematizar os nexos entre comunicação, cultura e educação. Em certa ocasião, durante o trabalho de campo em uma cidade brasileira junto à campanha majoritária, ouvia muitos comentários acerca de uma série de perseguições e atividades pouco seguras ao ser identificado como alguém atuante em alguma campanha rival. A experiência de temer que minha habitação fosse tomada por pessoas ligadas aos adversários de uma campanha chamou-me maior atenção para a presença de boatos, disse me disse, intrigas, rivalidades, rumores e agressividades nas eleições. Na observação de campo, nas entrevistas com os consultores políticos, nas análises dos livros e dos programas do HGPE, observei também certa persistência do gênero da fofoca nas eleições brasileiras. Através da reflexão sobre a fofoca, entende-se ser possível compreender formas tradicionais e contemporâneas de construção de modos de pensar, julgar e agir no âmbito da política. Pretende-se retirar a política do “altar” e trazê-la para o lugar no qual parece que sempre esteve no Brasil, na baixada, no horizonte das relações cotidianas, sem desconsiderar as hierarquias e as disputas de poder que envolvem indivíduos e instituições.   O processo eleitoral é um momento ímpar da democracia brasileira que atualiza aspectos relevantes da vida social e permite que comportamentos culturais alcancem maior evidência (HEREDIA et al, 2002). O conceito de tempo da política   (PALMEIRA, 1992), embora formulado a partir de estudos em pequenas cidades nas quais a população percebia a política como um fenômeno sazonal relacionado à disputa, ao conflito e aos mecanismos de divisão social, pode ser aplicado na dimensão nacional, desde que pensado de duas maneiras, tal como formulado por Moacir Palmeira – um fenômeno sazonal –, mas também como um fenômeno perene potencializado pelo processo de midiatização que permite maior acompanhamento das ações dos indivíduos e das instituições na entressafra da política, nos períodos não eleitorais4. O tempo da política deixa de ser uma categoria exatamente nativa e passa a ser o tempo do conflito, das disputas e das concorrências em todas as ocasiões em que os fatos políticos adquirem visibilidade para a população ou grande parte dela.       4 Atualmente, a mediatização opera como mediação central dos processos sociais, através de mecanismos diversos, constrói mediações comunicativas dos diferentes grupos da sociedade (MARTÍN-BARBERO, 1997; BRAGA, 2006; FAUSTO NETO, 2008).   F2       Aspectos sociológicos sobre a fofoca     A reflexão acerca da fofoca na política e sua relação com os processos socializadores nacionais passa por compreender a dimensão social do fenômeno e seus elementos de produção simbólica na articulação entre o indivíduo e a sociedade. Norbert Elias desenvolveu uma linha de estudos na qual buscou compreender os processos sociais, os níveis de integração, tomando em consideração relações macro e micro sociais por longa duração. O autor possuía uma sensibilidade na construção do objeto e do olhar que integrava sociologia, história e psicologia, articulando de maneira não linear, estrutura social e estrutura mental, construção proveitosa para compreender a natureza social da fofoca.   Elias (2011) considera que o indivíduo é resultado do processo civilizador no qual está inserido. Aponta que os costumes e os modos de pensar, sentir e se portar dos indivíduos são resultados da história social. Nos termos do autor, “variedades muito diferentes de controle das emoções emergem no contexto da conduta civilizatória” (ELIAS, 1993, p. 214). O controle mais complexo e estável da conduta do indivíduo, por sua forma rigorosa, mesmo que não planejada, em geral, passa de um controle externo a um controle interno. Assim, os processos civilizadores implicam na construção histórica de uma gama de valores interdependentes, normas e estruturas sociais propostas aos indivíduos na perspectiva de tornarem categorias de pensamento que lhes permitam desenvolver o autocontrole das suas ações.   Para o desenvolvimento deste argumento, chama-se atenção que Norbert Elias e Jonh L. Scotson, ao descreverem uma comunidade denominada como Winston Parva, notaram uma estreita relação entre as estruturas da fofoca e a comunidade, “um sistema complexo de centros de intriga” que mantinha o “moinho” das relações sociais em funcionamento (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 121). Consideraram que as fofocas não apenas tinham a função de apoiar pessoas e ressoar opiniões dominantes; também existiam como eficientes instrumentos de rejeição, para excluir pessoas e romper relações. A macroanálise acerca das práticas de cultura e de socialização arroladas na produção da comunicação política a partir de casos particulares se inspirada em Norbert Elias tendo em vista que o autor estabelece uma aliança entre holismo social   e o individualismo. Ou seja, ao pensar os produtos midiáticos arquitetados pelo marketing político, enquanto instância que visa influir sobre as ideias e as práticas dos indivíduos, deve-se considerar que essa instância social participa de uma configuração relacional e interdependente que inclui outras instâncias e um universo de indivíduos (público/receptores/eleitores) com esquemas de ação orientados por princípios nem sempre convergentes. Entende-se que o marketing e a publicidade, por necessidade de resultados econômicos e simbólicos, apropriam-se dessa aliança entre o social e o individual com maior pragmatismo, articulando valores gerais e particulares da sociedade.   Neste sentido, a fofoca pode ser constituída como importante elemento de análise socioantropológica, através da qual é possível pensar as várias dimensões da crença, dos consensos, dos conflitos, dos processos de interiorização e da exteriorização da ordem simbólica. A fofoca depende da contextualização e não está fora do conjunto de valores e de representações elaboradas por um povo ou grupo. Ela encena uma ordem moral, uma avaliação moral das condutas, contribuindo para explicitar processos de disputa, concorrência, formação de alianças e de enfrentamentos. Oferece um conhecimento sistemático, mesmo que superficial e contrastante, sobre as situações vividas, sejam elas nítidas ou ocultas. Implica controle social difuso, pois indica adequações e inadequações, prestígio e desvalorização das ações dos indivíduos e das instituições de formações sociais específicas. A partir de uma inspiração durkheimiana (2007), pode-se inferir que a fofoca na política é um construto social do processo histórico brasileiro, revelador dos modos de ser, pensar e agir no exercício da coerção, um mecanismo orientador das ações dos indivíduos. Os produtores da fofoca trabalham com um conjunto de crenças na formulação e divulgação dos fatos políticos no âmbito das disputas e concorrências, operam como agentes reflexivos que confrontam os demais indivíduos com imperativos morais para que respondam conforme as representações coletivas mais prestigiadas, chamando-lhes a agir com espírito de adesão ao grupo. Avançando numa leitura maussiana (2003), a fofoca pode ser compreendida ainda como um fato social total por articular uma ordem simbólica que envolve fenômenos de natureza religiosa, econômica, política, cultural, dentre outros. As demandas de condutas dos indivíduos diante da fofoca se impõem como regras morais a partir das quais devem agir. Cumpre lembrar que uma das possibilidades do   indivíduo/eleitor/receptor romper com esse sistema de prestações e contra prestações, via fofoca, possui, paradoxalmente, respaldo jurídico pois é garantia das liberdades democráticas vinculadas ao acesso à informação e de construção de posicionamentos políticos dissidentes. Porém, a fofoca na política articula-se aos valores e às regras morais de ampla apreciação, por isso, visa coagir os indivíduos para que, além de não romperem com o sistema simbólico, exerçam a função de difusores.   Tudo leva a crer, que a participação política está diretamente relacionada às dimensões do estilo de vida e gosto, às formas de pensar, julgar e classificar, aos modos de ser, agir e imaginar, construídos ao longo do processo de socialização dos indivíduos, dos grupos e da nação. Por isso, entende-se que a fofoca na política é contextualizada de acordo com o meio e os indivíduos que a promovem e têm contato com ela. Assim sendo, a fofoca na política não envolve do mesmo modo todas as pessoas. Na situação de campanha eleitoral, ela é mais abrangente, mas pode ter sido criada, melhor formatada e sintetizada em núcleos menores de indivíduos que gostam ou fazem política no cotidiano5. Por um lado, pode ser composição do entretenimento e da sociabilidade desse grupo mais próximo ao dia a dia da política. Por exemplo, em uma campanha tive a oportunidade de observar comentários recorrentes sobre um candidato que supostamente não teria um dos testículos. Os comentários nada acrescentavam ao debate político ou modificavam a decisão do voto, ao contrário, ele crescia nas pesquisas, porém, eram um recurso de ludicidade, baseado no escárnio e na zombaria sobre os candidatos. Por outro lado, se a fofoca envolve aqueles que gostam de política, não exclui aqueles que não gostam e a repudiam. Mais do que as fofocas esportivas e artísticas, a fofoca na política é utilizada sob o signo do coletivismo e do apelo ao valor nobre da defesa da justiça, da verdade e da dignidade humana. Apresenta-se como um apelo à atenção por considerar que a desatenção aos fatos políticos desestrutura a sociedade e implica em condições piores de vida; argumenta-se que isso obteria maior confiabilidade e instigaria os indivíduos a tomarem lado no conflito político.     5Apesar de Pierre Bourdieu (2008) ter conceituado o gosto no âmbito da cultura como expressão das reproduções econômicas e educacionais, sua acepção teórica contribui para pensar o gosto, por exemplo, na sexualidade (GOMES, 2010, 2015) e na política por ser um construto social atrelado à constituição do habitus que permite aos indivíduos orientar e expressar suas práticas sociais. O gosto é a manifestação das categorias de julgamento, classificação e ação dos indivíduos.   Enfim, se a fofoca envolve os que gostam e os que não gostam de política, envolve ainda certos agentes especializados que manuseiam um conjunto de informações sociais, políticas e culturais com perspectiva de exercício do controle efetivo das percepções e de orientação das ações dos indivíduos. É neste lado que os consultores do marketing político operam como vetores especializados na mediação entre mensagem e meio, conceito e produto, conhecimento e ação, na produção do diálogo entre os símbolos dos grupos e dos indivíduos e os símbolos dos partidos e candidatos.   Não se trata de conceber o processo eleitoral apenas como um momento de ampla educação cívica e de aprofundamento do debate acerca de temas base dos conflitos. Mas, através dele, poder averiguar como, no tempo da política, as tensões e concorrências latentes no cotidiano nacional tomam formas sociais. Constatar que a fofoca na política brasileira faz parte do modus operandi nacional é mais que compreender sua a recorrência e persistência enquanto estratégia, método, conteúdo e perspectiva de efeitos, é compreender as participações dos indivíduos e das instâncias sociais envolvidas na produção do fenômeno e os processos difusos de construção das representações e das práticas de cultura nacionais anexadas a ele.       A fofoca na comunicação política brasileira. F3   Na política brasileira, há uma série de indivíduos envolvidos na promoção de dados, defesas e respostas para as fofocas. Parentes, parceiros/as sexuais, ex-cônjuges, amantes, ex-funcionários/as movidos por mágoa, sentimento de justiça e com interesse de retaliação; adversários/as e concorrentes, por vezes, do mesmo partido, com interesses políticos anteriores ou futuros; lobistas e empresários que ambicionam contratos e influência no governo ou mandato; eleitores seduzidos por promessas de benefícios; militantes motivados pelos projetos políticos que participam. Os indivíduos são diversos e operam a partir de noções de vingança, justiça, lealdade, interesses particulares e/ou coletivos, afeição e rejeição, da busca de prestígio, de ganhos materiais e dinheiro. Ocasionalmente, é praticado o que se convencionou denominar como “fogo amigo”, um tipo de fofoca que inclui entrega de informações privilegiadas e depreciativas aos adversários, com o objetivo de atingir um aliado político e ocorre com maior frequência em períodos de disputas internas dos partidos   e governos, prévias eleitorais, disputa de cargos, status, prestígio, por desejo de influência sobre rumos das campanhas, dos mandatos e dos governos.   No Brasil, repedidas vezes, o “dossiê”, conjunto de materiais e documentos envolvendo vida pregressa, pessoal e pública, atividades ilegais e polêmicas sobre políticos, parentes, funcionários, partidos, esteve na agenda dos meios de comunicação nos últimos períodos eleitorais, adotados nos bastidores dos comitês como controle das ações dos adversários. Um profissional entrevistado relatou que em uma de suas campanhas, um partido adversário enviou um recado dizendo que se fizessem certas denúncias contra o seu candidato, colocaria na televisão cenas gravadas no parlamento da candidata desse consultor político votando contra um projeto de enorme apelo popular.   Esses dossiês são montados por assessores, por vezes, lobistas influentes dos bastidores da política local, regional e nacional que coletam e editam materiais na perspectiva de vendê-los às campanhas. Sabendo-se que ambos os lados têm informações a serem omitidas, faz-se uma espécie de “acordo de cavalheiros”, um “pacto de não agressão” que envolva determinado tema. Funciona mais ou menos assim: tudo bem que você tenha informações sobre mim que me prejudicam, mas olha aqui o que sei sobre você. Os dossiês podem ser um conjunto de informações públicas, divulgadas na impressa e em materiais governamentais, legislativos e da Justiça. Eles podem conter dados privados coletados de forma criminosa como são os casos de grampos telefônicos e espionagens. Na existência de escutas deste tipo, o uso delas em programas eleitorais quase sempre é vetado para as propagandas de rádio e televisão, visto que podem criar uma série de ações na Justiça, que ao contrário de terem efeitos positivos, podem ser um “tiro no pé”. Quando há políticos ou pessoas ligadas às campanhas com capacidade de influência, “dá-se um jeito” para entregar o conteúdo a algum meio de comunicação para que ele faça a divulgação com direito de ocultar a fonte. Publicados ou não, a coleção de dados e provas serve para mapear e influir sobre os posicionamentos e os reposicionamentos das campanhas, estratégias eleitorais e articulações políticas. Em última instância, serve como ameaça para neutralizar boatos, rumores, acusações e denúncias promovidas pelos adversários.   Em 1989, no segundo turno, nas vésperas da eleição para presidente, a campanha de Fernando Collor colocou Miriam Cordeiro, ex-namorada e mãe de uma filha de Luís Inácio Lula da Silva, no programa eleitoral relatando que o petista tinha sugerido a ela fazer um aborto. Este caso é histórico e polêmico no marketing político   brasileiro e objeto de interpretações e análises distintas sobre o ato de divulgar e a reação dos candidatos e dos eleitores (MENDONÇA, 2001; SANTA RITA, 2002)6. Na eleição municipal de 2004, no sul do Brasil, uma mulher que se passava por esposa de um deputado homossexual não assumido e candidato a prefeito brigou com ele e, por vingança, ofereceu a informação aos adversários sobre a relação de fachada, servindo-se de material vivo para panfletos e todos os tipos de acusação. Uma consultora política que trabalhou em uma campanha para prefeito do interior de uma das cidades do Sudeste, nas eleições municipais de 2012, relatou-me que a equipe da campanha precisou chamar a esposa do candidato para contar à ela que nos dias seguintes seria divulgado um material dos adversários com uma informação verídica que seu esposo, candidato à reeleição, tinha um filho a partir de uma relação extraconjugal. A consultora detalha: “a bichinha ficou derrotada, você precisava ver, mas ela era a única que poderia defendê-lo, dependendo de sua reação, colocaria tudo a perder”. Em um município da Amazônia brasileira, ouvi militantes reclamarem que os taxistas mobilizados pelos adversários diziam que o candidato tinha criado uma “indústria da multa”7. Para os militantes, os taxistas eram aliados dos adversários e tinham interesses próprios por infringem as regras do Código Brasileiro de Trânsito e normas municipais.   A ex-namorada de Lula, a esposa de fachada, a esposa traída, os taxistas são exatamente aqueles indivíduos que têm credibilidade para falar sobre aspectos privados e públicos dos candidatos, pois têm conhecimento de causa. Neste sentido, quem conta a fofoca e quem a desfaz necessita representar autoridade moral para ter credibilidade junto a quem a recebe, um indivíduo que tenha uma referência e uma identificação simbólica com quem recebe a notícia.   Norbert Elias (2000) aponta a dimensão da cumplicidade no ato de fazer fofoca. No caso da política brasileira, durante os programas eleitorais, observam-se estratégias de colocar os candidatos ou apresentadores como parceiros do telespectador/receptor/eleitor, como se a informação ofertada contribuísse para o 6 Duda Mendonça, consultor de Lula da Silva em 2002, sugere que, naquela ocasião, o Brasil poderia ter visto “um Lula confessando sua dor” e isso poderia ter mudado os rumos da “história do Brasil” (MENDONÇA, 2001, p. 62). Enquanto Chico Santa Rita (2002), então consultor de Collor de Melo em 1989, considera que apresentar o vídeo fazia parte do direito do eleitor conhecer integralmente o candidato.   7Indústria da Multa é uma forma pejorativa de referir-se à quantidade de multas efetuadas pelos órgãos públicos. Roberto DaMatta et al (2010) aponta que há uma forte repulsão a pagar multas mesmo quando se comete infrações, a partir de “ideais pessoais de superioridade e ideias de igualdade” (DAMATTA et al, 2010, p. 117).   maior esclarecimento a respeito dos fatos ocorridos. Predominantemente, quem assume o papel de defesa e de acusação é o ator/apresentador, às vezes, um homem com cabelos grisalhos, uma mulher ou senhora adulta, representando experiência e confiabilidade, de forma que o candidato esteja protegido de ser associado à denúncia e à acusação. Fugindo à regra, quando o boato, a fofoca e a difamação atingem à honra do candidato, ele é agente relevante da própria defesa. É recorrente que as peças de acusação entrem no início ou no final dos programas antes de entrar a vinheta de abertura ou encerramento, visando suavizar a responsabilidade pela acusação.   As pesquisas qualitativas, grupos focais e entrevistas operam como um feedback com alto grau de inovação, especialmente nas campanhas de grande porte. As pesquisas corroboram para legitimação e autorepresentação de cientificidade da profissão de consultor político (SCOTTO, 2004). Utilizam-se recursos e conhecimentos da antropologia, sociologia, pedagogia, psicologia e, mais recentemente, da neurociência (LAVAREDA, 2009) para coletar e interpretar dados com o objetivo de compreender a produção, a recepção e a mediação de ideias não apenas políticas. Em grupos focais, testam peças publicitárias, propostas, respostas dos candidatos, impacto de temas polêmicos etc. Com isso, visam aferir e compreender valores, preconceitos, posturas, desejos, sonhos, rejeições oriundos de outras matrizes de cultura, como família, religião, comunidade de pertencimento e de diversos marcadores sociais da diferença (gênero, classe, raça e etnia, religião, fase da vida) que possam influir no comportamento eleitoral. Buscam, de forma ágil, compreender os registros sociais de afeição e de reação dos eleitores para avaliar as produções midiáticas que tenham como conteúdo e estilo discursivo a fofoca, ou seja, entender os modos de pensar, julgar e reagir dos indivíduos, em diálogo com suas disposições de habitus no que concerne à apreciação e à recepção dos rumores, das polêmicas, das denúncias e das propostas.   O controle social por meio da fofoca na política se dá por duas vias. Pela via popular quando os indivíduos possuem argumentos que podem desconstruir a fofoca. E pela via jurídica, através do recurso à Justiça, para os casos de televisão e rádio, através do direito de resposta. Não é sem razão que um dos setores mais importantes e emergentes nas campanhas eleitorais brasileiras, junto aos especialistas em marketing político, é o de advogados especialistas em direito eleitoral, visando reduzir o tempo de tramitação de processos e melhorar a argumentação jurídica para acusação e   defesa. Entre junho a novembro dos anos eleitorais, os Tribunais Regionais Eleitorais e o Tribunal Superior Eleitoral trabalham com demandas maiores do que em outros períodos. Há todo tipo de demanda, desde denúncia de instalação de materiais visuais em locais proibidos, compra de votos a disputas envolvendo as fofocas, disse me disse, acusações sem provas, distorções sobre práticas, currículos e ideias dos candidatos.   Um dos profissionais do marketing político experiente em campanhas, relatou-me, que quando ganha um direito de resposta inicia seu texto assim: “a justiça determinou direito de resposta ao candidato tal, por tal e tal motivo”. Segundo ele, o uso da informação justiça corrobora o reforço da noção de que seu candidato foi difamado, caluniado, desonrado injustamente e que o adversário foi punido. Este recurso linguístico possui relação simbólica com os apelos populares como “justiça seja feita” que toma o lado do injustiçado como lado legítimo.   Os efeitos pretendidos são diversos e demandados pelas partes interessadas nas consequências da fofoca. Porém, as estratégias de convencimento e de informação procuram fortalecer e ampliar o grupo apoiador dos candidatos e dos partidos. É recorrente nas falas dos consultores políticos que uma das primeiras tarefas da campanha é fazer o eleitor “admirar” o candidato. Segundo Duda Mendonça (2001), ex-consultor de Paulo Maluf e Luís Inácio Lula da Silva e algumas dezenas de outros políticos de grande expressão no Brasil, seu trabalho visa fornecer argumentos para que o indivíduo se torne um cabo eleitoral. Esforça-se para construir um processo de “admiração” de modo que o eleitor possa defender seu candidato diante de qualquer investida depreciativa dos adversários. Em suas palavras, o eleitor “tem que saber responder à indiferença, à rejeição, à intriga, à crítica, ao medo”, por meio de argumentos fortes e persuasivos para que esteja “vacinado contra tudo”. (MENDONÇA, 2001, p. 59).   O marketing mais organizado nas campanhas oferece argumentos para que os indivíduos possam brigar politicamente. O conteúdo e o modo como a informação é transmitida pode unir pessoas e militantes que pensam diferentes em diversos aspectos, mas possuem repulsões próximas. Sabendo que há uma maioria de brasileiros contrários às privatizações dos serviços públicos, nos segundos turnos das eleições presidenciais de Lula Inácio Lula da Silva (2006) e Dilma Rousseff (2010), utilizou-se o artifício de risco quanto ao retorno do PSDB ao governo federal. Ao recorrer aos temas privatização e desemprego, planejava-se não apenas “vacinar”   parte da população contrária às privatizações e temerosa acerca da instabilidade econômica, como também implicava efeito sobre militantes, simpatizantes da esquerda e pessoas mais propensas ao discurso ético-mudancista do PT até 2002. Mesmo rejeitando o governo Lula por conta da corrupção, das alianças conservadoras e dos investimentos em obras que prejudicaram populações pobres e indígenas, por meio do conjunto dos fatos narrados e dos argumentos oferecidos, esses indivíduos poderiam refletir que a volta do PSDB representaria um risco maior de afastamento de seus anseios. Seria um antídoto, mesmo não atraindo a admiração plena desses eleitores, a campanha poderia exercer influência para o voto em uma candidatura “menos pior”, a partir de peças publicitárias comparativas que os recordavam sobre o período do governo tucano.   Porém, os consultores políticos pesquisados alertam para o risco de os efeitos sobre a recepção não saírem como planejado, especialmente, quanto aos temas polêmicos de ordem moral. Usar casos particulares como vida pessoal, uso de drogas, aborto, religião, casos extraconjugais, filhos fora do casamento podem implicar “efeito bumerangue”, voltando o foco e as acusações para si mesmo. Um dos publicitários entrevistados informou que ao ser contratado demanda a confiança do candidato e que pergunta sobre as informações que caso surjam na campanha possam destruí-lo. A partir deste relato, busca neutralizar possíveis acusações. Exemplo disso, certa vez, um político lhe disse que havia internado o filho em uma clínica para dependentes químicos e que, portanto, não faria campanha aos sábados a cada quinze dias, sendo possível que os adversários usassem o caso de seu filho para atacá-lo, questionando-o “se ele não era um bom gestor da família como poderia ser bom gestor público?”. O consultor afirma que o fato nunca foi utilizado contra esse político, porém, se viesse à tona, poderia ter um “efeito bumerangue”, pois julga que a população também se compadece dos pais que têm filhos dependentes químicos. Outro consultor lembrou que “o boato na campanha é igual à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), às vezes, sobram respingos até para a oposição que achou que surfaria sobre a denúncia”, ou seja, a fofoca, a denúncia, o boato, podem se voltar com efeitos negativos contra aquele que a iniciou e com impactos piores do aqueles imaginados para o adversário.   No Brasil do século XXI, com ainda maior força, a partir da segunda década, não é possível pensar a política sem as performances coletivas e individuais no âmbito da Internet e das mídias eletrônicas. O modelo de mídias sociais tem se tornado um   espaço de expressão política para conquista de informação e o exercício da manifestação, contestação e denúncia (MAIA et al, 2011; MARQUES et al, 2013). A internet tem sido o canal de voz de muitos indivíduos, diante do esvaziamento dos espaços políticos nas ruas. Porém, também tem sido através dos ambientes virtuais que muitos movimentos se articulam e tomam ruas e praças para expressão da indignação.   Em Belo Horizonte, por meio das mídias sociais, um grupo de indignados com a prefeitura por proibir o uso de uma praça para manifestações criou um evento chamado Praia da Estação. A proibição e o evento tomaram tal magnitude que foram utilizados pelas duas principais candidaturas de oposição ao prefeito nos programas eleitorais e debates da eleição municipal de 2012. Diante da persistente crítica, a campanha de reeleição do prefeito criou um vídeo contra denúncia com depoimentos explicando que seus acusadores agiam de má-fé. Pouco tempo depois do vídeo do prefeito chegar à Internet, o movimento criou uma série de contra a contra denúncia, na qual continha imagens da Tropa de Choque da Polícia Militar e Guardas Municipais com binóculo vigiando a praça, cópias do decreto de proibição do uso da praça. Internautas indignados compartilhavam o vídeo contra a contra denúncia com a seguinte mensagem “uma imagem vale mais que mil mentiras do prefeito”. Diante da crescente midiatização, da interdependência das instâncias (SETTON, 2002) e do declínio dos programas institucionais de socialização contemporâneos (DUBET, 2002), os indivíduos não podem ser tomados como agentes passivos. Eles interferem nos processos de formação em que estão inseridos. Por isso, segmentos que gostam da política ou que não gostam dela podem concorrer, mesmo em condições desiguais, com as grandes estruturas de campanha na produção e promover uma contra produção dos rumores e dos boatos. A fofoca na política nem sempre pode ser vazia de conteúdos e informações técnicas. O esvaziamento do argumento e da comprovação pode ser identificado pelo receptor como perseguição rasteira não soando positivamente aqueles que veem na política um espaço de transformação coletiva ou que a tomam a partir de um valor nobre na qual a disputa ocorre em um jogo limpo. A fofoca pode ser também instrumento de manipulação política, em seu sentido mais negativo. Por isso, para que os rumores e denúncias tenham maiores efeitos sobre as percepções dos indivíduos, tem-se o cuidado para que ela não seja considerada manipulação. Para atrair legitimidade ao discurso e, consequentemente, a   adesão, trabalha-se no sentido de selecionar informações técnicas relevantes, argumentos sintonizados com as percepções culturais dos indivíduos e com os elementos de comprovação. Por meio de juízos de caráter pessoais e subjetivos, não é raro o uso do exagero e da emoção para qualificar e desqualificar os fatos e classificar os defeitos e as virtudes dos agentes objetos da fofoca. Contudo, no processo de disputa e de tentativa de persuasão dos indivíduos, o humor e o sarcasmo promovem uma teatralização e uma dramatização da política com certa leveza e dissimulação da agressividade, sem perder a dimensão da comprovação capaz de atribuir condição de verdade à informação narrada.   A fofoca pode ser entendida como uma narrativa, uma estratégia de discurso que conta sobre uma ação, um acontecimento, fato ou evento, conta sobre: o quê se narra, ação narrada; conta sobre o tempo, quando ocorreu a ação; o lugar onde a ação ocorreu; os participantes e os observadores envolvidos na ação; a razão pela qual a ação ocorreu; o modo como a ação ocorreu e as consequências, os desfechos e resultados provocados pela ação. Isto posto, a fofoca é conteúdo e forma, é a informação de modo espetacular, dramático e teatral. Por meio dela, os fatos ocorridos na vida social são narrados para que componham parte da sociabilidade, por vezes, apenas como elementos lúdicos das relações, mas, principalmente, compõem os processos de socialização nacional pela tentativa de estabelecer sintonia entre a informação sobre os fatos ocorridos e os valores já internalizados pelos indivíduos. A fofoca é uma prática de cultura que socializa a todos a partir da socialização de seus interlocutores, pois somente é possível ser compreendida e obter efeito se os elementos que a compõe são significativos para os produtores, mediadores e receptores dela. Por fim, somente tem eficácia se confronta com as – ou se alinha às – categorias do pensamento, do julgamento e da ação dos indivíduos.       Desfazendo a fofoca a partir de sentidos culturais   F5 A partir de um caso, pode-se observar dimensões culturais da fofoca no Brasil? É possível compreender as linhas de interpretação cultural? Entende-se que sim, pois o caso analisado a seguir está situado em um contexto histórico e social e expressa a impregnação de valores e crenças mais gerais. O leitor pode interagir com o texto assistindo ao vídeo do programa eleitoral de Ricardo Coutinho, candidato ao   governo da Paraíba em 2010, na íntegra8. Nota-se que a equipe coordenada por Duda Mendonça elaborou uma narrativa para desarmar a linha de boataria que tinha se organizado para desprestigiar seu candidato baseada em noções correntes no modo de pensar, julgar e agir de um conjunto expressivo da população. Enquanto adversários anunciavam que Ricardo tinha um “pacto com o diabo”, sua campanha buscava em primeiro lugar mostrar que a difamação era absurda e leviana. Em seguida, acusava os adversários de não saberem competir dentro dos valores e dos marcos da democracia. E, por último, manifestava-se relevante defesa de Ricardo empregando as ideias de honra e covardia.   Há um modo de noticiar que embaralha a diferença entre informação e fofoca. Elogios e críticas promovem aproximação e afastamento entre indivíduos e instituições. Como observado por Elias e Scotson (2000), “estruturalmente, porém, a fofoca depreciativa [blamegossip] é inseparável da elogiosa [pridegossip], que costuma restringir-se ao próprio indivíduo ou aos grupos que ele se identifica” (Elias, 2000, p. 121). Tais ações prestigiosas ou depreciativas estão situadas em uma condição de interdependência da narrativa, pois ela articula positividade e negatividade no mesmo termo, na mesma palavra e na mesma informação. Neste sentido, desarmaram-se a fofoca e a mentira buscando associar valores que pesam no imaginário popular brasileiro. O apresso pelo Homem Honrado e o combate ao Homem Covarde. Certamente, não é possível considerar estes valores como unânimes, mas oscilam como persistentes representações no imaginário social. Na linha editorial do programa de Ricardo, sua equipe aponta e repete que o modo do adversário fazer campanha se configura como “baixaria”, ou seja, comportamento inadequado, mau-gosto, falta de classe e deselegância. Ao apontar e reafirmar a baixaria do lado adversário, se protege Ricardo da acusação de desenvolver também uma linha de grosseria. Ao mencionar repedidas vezes a presença da Polícia Federal e da Justiça Eleitoral na resolução da “baixaria”, reforçam-se as ideias de injustiça vivida pelo candidato e de covardia do lado adversário.   No Brasil, existe uma variedade muito grande de religiosidades, numericamente com uma força maior para os católicos e evangélicos e em menor força para os espíritas e praticantes das religiões de matriz africana, sendo que o pertencimento religioso pode influir em graus diferentes sobre a orientação das     8 O programa consta na íntegra: http://www.youtube.com/watch?v=uDYUPMp-Nb8. Acesso: 14 de março de 2013.   posturas e das opiniões de acordo com o seguimento. Concomitantemente, a campanha de Ricardo assegura sua posição religiosa entre os cristãos – a maioria – e generosidade para as religiões minoritárias. Constrói-se, com isso, um entendimento a respeito do Homem Honrado que se compadece não apenas dos mais fortes, mas também dos mais fracos. Por consequência, refuta a ideia de divisão política da população através da variável religiosidade e empurra o adversário para o polo do   Homem Covarde.   Em resumo, trabalha-se a possibilidade de atrair simpatia e boa avaliação para o lado de Ricardo, como um indivíduo capaz de unir o Estado, as pessoas, independente da religião. Por outro lado, ao mostrar a inadequação do adversário, busca-se imprimir nele os signos da injustiça e da deslealdade, capaz de destruir e dividir ao invés de somar. Busca-se impregnar nos candidatos características que se aproximam de valores prestigiados e desprestigiados no cotidiano da população. Retomam-se linhas de interpretação e categorias de classificação para representar as candidaturas e permitir que os eleitores se posicionem e decidam o voto tendo como ponto de partida seu próprio repertório cultural.   A campanha de Ricardo Coutinho constrói argumentos para desarmar as difamações e busca distinguir estilos de ser, pensar e agir diante do conflito e da disputa entre projetos políticos a partir de valores modernizantes. Assume-se que em uma democracia sofisticada, uma política de alto-nível não tem barraco, baixaria, fofoca, disse me disse e jogo sujo. Chama para si a noção de jogo limpo, ideário relevante no imaginário social, mesmo que no cotidiano do país o jogo limpo, por vezes, só é defendido e praticado quando interessa ao indivíduo. Isto posto, ao mesmo tempo em que diz não usar “o nome de Deus em material de campanha”, no final do programa eleitoral, as falas dos entrevistados e populares fazem do nome de Deus o seu material de campanha para desarmar os boatos9. Nessa medida, entende-se que a fofoca não opera de acordo com princípios de uma pretensa racionalidade científica/cartesiana, ela permite a presença de ambiguidade, duplo sentido e contradição. Portanto, há um duplo objetivo com essa sutil contradição. Pretende-se   9 Sequência de falas sobre e para o candidato: “Que Deus te proteja”; “se Deus quiser”; “que Deus te abençoe”; “confie primeiramente em Jesus”; “a pessoa que trabalha pro pessoal pobre, faz essas praças com essas belezas não é de Satanás. Deve ser de Deus, né?”; “é uma pessoa de Deus mesmo”; “vote com Ricardo Coutinho porque eu me responsabilizo. Por ele eu levo o pescoço à forca”; “ele é uma pessoa muito católica (... ). Com certeza, ele já está eleito porque o povo e Deus é quem quer. Ricardo, meu voto é seu e você já está ganho em nome de Jesus”.   colocar o candidato em diálogo com aqueles que refutam a mistura de religião e política e, concomitante, promover o diálogo com a maioria cristã.   Em resumo, sem citar nomes, a campanha defende o candidato e acusa os adversários pelas infâmias, com delicadeza e sobriedade. Porém, tratando-se de segundo turno o adversário era apenas um, Zé Maranhão (PMDB), o governador em busca da reeleição. Não citar o nome Zé Maranhão, primeiro, visava não provocar ações na justiça que implicasse em direito de reposta para o adversário, e, segundo, era uma estratégia de generalizar o argumento e distanciar-se da noção de ataques e contra ataques pessoais. Tal prudência reforçava a concepção de que a democracia é o conflito de ideias e não de pessoas. Não obstante, a narrativa do programa de Ricardo insistia que a “justiça” personificada na Polícia Federal que estava do seu lado é confirmada com cenas construtoras de evidências e de provas que o povo já tinha argumentos sólidos, sobretudo políticos e religiosos, para defendê-lo. Isto é, as cenas finais do programa discursavam a fofoca positiva de que Ricardo era um “homem de bem”, ou Homem Honrado, um “homem cristão” e que tais noções estavam cristalizadas no modo de pensar, julgar e votar da população paraibana. A construção simbólica disso é como se a pessoa que estivesse em casa assistindo ao Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita dissesse o mesmo que as pessoas entrevistadas na televisão. A narrativa final do programa, busca provar que a fofoca negativa foi repudiada, que Ricardo defendeu a sua honra e que a fofoca positiva tinha se espalhado como verdade inquestionável, acusando o adversário de atraso e caminhar na contramão de valores modernizantes.   O caso da campanha de Ricardo Coutinho para o governo da Paraíba explicita tensões constitutivas dos modos de pensar, julgar e agir no Brasil. Seu adversário sabe que, no cotidiano social brasileiro, a “concórdia religiosa” citada por Ricardo não é um fato totalizante. As disputas entre seguimentos religiosos, por vezes, impõem um jogo de desqualificação e estigmatização das experiências de fé dos outros grupos minoritários (MARIANO, 2003; SILVA, 2007; ORO; BEM, 2008). As campanhas em confronto pautadas nos entendimentos populares e nos mitos acerca dos indivíduos de religiões de matriz africanas e satanistas. Uma acusando e a outra se defendendo e atacando. Ricardo busca, ao se defender, apresentar fatos e provas, de que não é satanista. Sua resposta busca sanear o conflito da religião, colocando a democracia, as propostas e as ideias, como eixo central do processo de concorrência.   Norbert Elias (1994) considera que os fenômenos sociais se desenvolvem em um grupo ou uma sociedade a partir das condições de possibilidade do próprio grupo, a partir de uma conjuntura histórica e social que asfaltam o caminho para que outras ações apareçam e se desenvolvam. Por isso, é possível entender que em nossa configuração social brasileira, coabitam certas ambiguidades e contradições que, no tempo da política, tomam colorações mais definidas. Em casos como o descrito, alimenta-se o ódio e a intolerância religiosa porque eles existem. Só se alimenta a ideia de convivência pacífica porque também é um valor estimado. Pode-se considerar que as percepções sobre a política podem ser compostas por percepções advindas do processo de incorporação de costumes e de experiências individuais e coletivas de muitos universos simbólicos, dentre eles a religiosidade, a escolarização e a participação em grupos de pares. É em cima dessa composição do habitus nacional, coletivo, de um grupo local, de seguimentos, do município, do estado, da região ou do país, que os profissionais do marketing político buscam atuar. Trabalham para compreender as resistências, crenças, hábitos, visões de mundo, interpretá-las de modo a acomodar seus candidatos nas linhas de raciocínio dos indivíduos10.   Sincronicamente, o uso da fofoca na política brasileira pode operar em dois polos de ambiguidade, ou seja, coopera a favor de valores arraigados e tradicionais pautados na intolerância, mas também pela solidariedade e compaixão ao próximo. Esta operação ocorre, sobretudo, na recuperação das noções acerca do “homem cordial” (HOLANDA, 1995) e da mestiçagem (FREYRE, 1973)11. Trata-se de um tipo de prática cultural que aponta para a recorrência da ambiguidade das ações. Ou seja, essa articulação entre intolerância e acolhimento é construída para persuadir o eleitor a tomar uma posição, mas apenas é possível utilizar tal recurso porque, no seio da sociedade, há uma predisposição para agir dentro dessas polarizações. Essa ambiguidade se manifesta assim: “olha o que ele diz, olha o que ele pensa, olha o que ele faz” e “olha o que eu digo, olha o que eu penso, olha o que eu faço”; “de que lado  
  • Oriundas da ciência política, a escola econômica (DOWNS, 1999; ALMEIDA, 2008; LAVAREDA, 2009) sobre o comportamento eleitoral influi com grande força no marketing político brasileiro contemporâneo, porém, na prática laboral, os consultores, com maior ou menor consciência teórica, não desconsideram as contribuições das escolas psicológica e sociológica.
  • A noção de homem cordial expressa um modo de ser, pensar e agir do brasileiro que alia conservadorismo e contestação sem calculadamente ser racional (HOLANDA, 1995). A mestiçagem, enquanto possibilidade de civilização e aproximação de contextos diferentes, articula duas faces antagônicas, a do dominante e a do dominado (FREYRE, 1973).
  você está? De que lado você vai ficar?”; “ficará do meu lado que sou seu amigo? Ou do lado de quem é meu adversário e, portanto, seu adversário?”. Sob um fictício signo da harmonização, propõe-se uma reflexão que polariza os indivíduos e suas demandas, suas posturas e seus posicionamentos dentro do jogo político como se ao ataque o candidato fosse um atentado particular ao indivíduo/receptor/eleitor. A fofoca faz alusão à noção de distinção que possibilita o indivíduo acionar suas categorias de julgamento para responder às informações que lhes são dirigidas e, logo, poder agir.   F7   Considerações finais     Retomando o início do texto, o sentimento de temer que a minha habitação fosse tomada por pessoas em busca de materiais e filmagens da campanha não era baseado no irreal, pois atos parecidos haviam ocorrido em outras situações naquele estado. No trabalho de campo, nas leituras e nas observações de campanhas, observei cuidados de todos os tipos, desde limitações para a entrada do pesquisador no trabalho de campo aos cuidados para evitar atos criminosos contra a campanha e pessoas ligadas a ela, e mesmo cuidados para administrar as informações que eram divulgadas. Como demonstrado, a fofoca é um fato social total, um fenômeno perene da política brasileira que articula elementos de ordem religiosa, econômica, jurídica, cultural, porém, é no tempo da política, nas eleições ou em outras situações em que a política toma maior relevância para os indivíduos, que a fofoca é mais praticada e percebida. Nas eleições, a fofoca é cuidada e praticada por quase todos, seja como entretenimento ou como ação efetiva para orientar as percepções dos indivíduos/receptores/eleitores. Ela passa por todas as áreas de uma campanha, está nos comitês, nas ruas, nas conversas informais, púlpitos de igrejas, mesas de bares, nas agências de propaganda e nos telejornais. Ela envolve e atinge os que gostam e os que não gostam de política e sua estrutura visa dialogar com a estrutura social na qual está posta. Ela vai desde uma conversa informal aos atos de grande elaboração estratégica, podendo se configurar ainda em uma série de crimes penalizáveis.   Diante da sofisticação da midiatização contemporânea, profissionais especializados em comunicação política tornam-se um dos mais importantes seguimentos de mediação (CASTILHO, 2014b), elaborando com maior perícia as   linhas de significados para influir nas estruturas de racionalidade dos indivíduos. Tentam conhecer a configuração social do país, de um estado ou uma cidade com o objetivo de estabelecer um ambiente de cumplicidade e de proximidade com o indivíduo, levando em conta suas predisposições, suas construções mentais e simbólicas. Em outros termos, investigam os feixes de possibilidades existentes no universo social para atuar sobre ele. Controlam socialmente a comunicação dos partidos e candidatos, controlando as mudanças, as continuidades e as fixações do comportamento eleitoral. A partir de valores externos aos indivíduos e de amplo impacto, visam transformar o controle externo em controle interno expresso através do voto e do envolvimento em um dos lados em disputa.   Contudo, os indivíduos concorrem no campo político em condições distintas (BOURDIEU, 1996). A constituição e a resolução dos conflitos estão atreladas às armas que cada indivíduo e cada grupo tem para duelar. As campanhas mais caras e os consultores mais experientes usam a fofoca com maior eficiência por conta do tempo e dos recursos financeiros, jurídicos, tecnológicos e pela equipe especializada de que dispõem. Todavia, não são apenas as estruturas de campanhas que possuem recursos para desenvolver mecanismos de exercício do controle das percepções dos eleitores. No âmbito da sociedade civil e de cidadãos dispersos, há uma ampliação dos controles das ações dos políticos e dos candidatos, através das redes sociais, por intermédio de narrativas próprias com as comprovações e os instrumentos que têm em mãos para criar, ampliar ou combater fofocas na política.   Os limites entre a informação e a fofoca são tênues e, por vezes, são recursos uma da outra, em muitos casos, a mesma coisa. No âmbito da política, relacionam a fofoca a um valor nobre de defesa da democracia e do bem coletivo, por isso, o modo do marketing político lidar com ela ou desconstruir suas consequências negativas, nem sempre é realizado de forma brusca, mas através de estratégias difusas, sutis e subliminares12. No caso das propagandas que visam reforçar aspectos positivos, a sutileza é menor. Nas peças de ataque aos adversários, a sutileza é maior, visto que, o Brasil, embora seja rico em programas midiáticos que se pautam pelo que se convencionou denominar como “baixaria” e exagero, nas campanhas, os consultores   12No caso brasileiro, segundo Antônio Lavareda (2009), cientista político e consultor de marketing político, as propagandas positivas sobre os candidatos superam as propagandas negativas. Esta proporção varia de acordo com a população ou país para qual se dirige a campanha, pois as disposições emocionais para recepção também variam.   políticos constatam que a baixaria explícita não é bem recebida13. Dependendo do desenrolar da fofoca, quem a iniciou pode se prejudicar. Portanto, entende-se que a fofoca possui um caráter relacional e de controle social dócil, é formulada como um diálogo entre indivíduos e instâncias sociais com seus interesses específicos, porém, esse diálogo não é necessariamente uma conversa igualitária, é um diálogo no sentido de método e atua como vetor de imposição sutil. Por fim, as estratégias do marketing político podem relacionar-se ou melhor, possuem afinidades eletivas com as estratégias educacionais da sociedade. Num aspecto mais ampliado, relacionam-se com a socialização dos modos de ser, pensar e agir dos indivíduos. Os consultores ora propõem ideias novas e ora articulam os discursos em conformidade aos valores sociais correntes e majoritários. Em outras palavras, os profissionais de marketing político ajustam as candidaturas à situação de conflito, sem, necessariamente, promover transformações internas na abordagem de alguns temas objetos de conflitos mais tensos. Solucionam de modo superficial e temporário o tema, que continua latente, podendo se manifestar em outras ocasiões e processos eleitorais e políticos do cotidiano local e nacional.   Em síntese, os candidatos e os políticos estão inseridos em uma minuciosa rede de controle social estruturada ao longo de muitas gerações, demandado alinhamento às formas de pensamentos correntes que classificam comportamentos e opiniões políticas, posturas religiosas e culturais, resultado esperado do processo civilizador mais concreto vivido pelos indivíduos e pelos grupos. A fofoca, enquanto prática de cultura, possui caráter ambíguo, pois relaciona-se com o crime no exercício da injustiça e da ilegalidade e com os valores da democracia no exercício da justiça e da legalidade. A fofoca, enquanto narrativa sobre os conflitos políticos, alinha argumentos de ordens jurídicas e morais, permite a construção de linhas de raciocínio para o controle das percepções e dos modos de ser, julgar e agir no âmbito da política.   F8   Referências Bibliográficas   ALMEIDA, A. C. A cabeça do eleitor: estratégias de campanha, pesquisa e vitória eleitoral. Rio de Janeiro: Record, 2008.     13 Há diferenças entre o nível de ataque na televisão e no rádio. No primeiro meio, a sutileza dos ataques é maior e, no segundo, os golpes são mais diretos e menos sutis, utilizando a música (jingles) e personagens satíricos como recursos para ataque e contra-ataque com doses de sarcasmo e ironia.   BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 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