Longe dos Quintais e das Ladeiras
Nino Bellieny 05/06/2016 09:57
A postagem feita pelo advogado itaperunense Reinaldo Azevedo Afonso de um meme* em seu perfil do Facebook, suscitou várias opiniões, além de uma imediata relembrança da infância de quem viveu outros tempos e costumes: 13321699_381729651951184_2573522377338084846_n Os remédios eram amargos, ardidos, fugia-se deles e das mãos carinhosas, porém firmes da mãe, a guardiã do lar e da saúde. Joelhos ralados, braços machucados, dedões desafiados por paralelepípedos e tocos de mato, cortes, lanhaduras, lesões do futebol na rua, do carrinho de rolimã, da bicicleta, eram inevitavelmente tratados com merthiolate, iodo, éter, álcool misturado a outros ingredientes, e todos tinham que arder ou não passavam a certeza de eficácia. Para beber, nenhum remédio era saboroso. Na careta, o nariz tapado, o corre-corre pelo quintal, ( lembra-se do que era quintal/terreiro?), até ser laçado pelos braços maiores do que as nossas alturas, às vezes pelo pai, o cara dos últimos recursos, os  definitivos para filhos peraltas. E se não aceitasse o atendimento pela conversa, ia pela força, contida, mas, necessária. Não existiam postos de saúde por toda a parte. Era em casa ou na farmácia, raras naqueles tempos, mas com farmacêuticos sabedores de mais ciência do que muitos médicos de hoje, dependentes de tecnologia até para diagnosticar um espinho no pé. A analogia proposta pelo meme, joga a memória naqueles distantes dias, um estilo de vida comum até os final dos Anos 80, quando tudo começou a mudar. Mais apartamentos, mais cimento, menos quintais e ruas de chão batido, menos sítios e mais play-grounds. Mães trabalhando fora e superprotetoras quando em casa, controlando filhos para não se arriscarem lá fora. "Lá fora" passou a ser um mundo perigoso, cheio de estranhos, doenças, drogas, centenas de perigos em cada metro quadrado. Filhos criados em gaiolas douradas com tudo às mãos. A emoção fria dos jogos eletrônicos, a ausência de ar livre, de árvores para trepar, ( o verbo servia para isso também,)  de muros para serem pulados, de imaginação para ser exercitada. O medo como ingrediente principal da receita de sobreviver e não de viver. Somando-se a pais ausentes, mães solitárias, nenhum irmão, sequer um cachorro, porque causa alergia, porque transmite doenças e por isso, perde o menino ou a menina, o melhor amigo de infância que possa haver. Filhos criados por excelentes educadores, psicólogos, supervisores, terapeutas, todos preparados e úteis, mas... compensa a ausente presença dos pais? Geração de creches o dia inteiro, de quartos trancados, de condomínios fechados, crescendo com a referência da televisão e da internet, tudo vem por uma tela fria, sem a possibilidade da frustração de se perder uma disputa de corridas, do pique-esconde, pique-bandeira, queimada, amarelinha, futebol com chinelos servindo como baliza de gol, bola ou búlica, triângulo, pião, carrapicho, pipa e tantos outros quase desaparecidos, apenas preservados em alguns lugares do interior do país que cada um tem dentro de si. Tomamos banho de rio, lagos, brejos, açudes. Tomamos banho de merthiolate e estamos aqui. Sabemos lidar com frustrações, com a presença das leis ( nossos pais eram A Lei), respeitamos os mais velhos. Não somos os melhores nem santos por isso, mas resistimos melhor ao imprevisível e aos tropeços. Sabemos dar a volta por cima por mais que demore. Não morremos porque tínhamos limites e carências materiais. Não esmorecemos porque os remédios eram amargos ou ardiam. A vida é bife duro e não adianta querer amaciar para os filhos, pois ela sempre inverte as regras do jogo e não avisa. Bateu saudades do merthiolate. E do olhar materno dizendo tudo sem uma palavra quando o amor em forma de repreensão era a ordem para ser firme. Isso secava as lágrimas. Isso nos fazia lembrar de que homens podem até chorar, mas, abrir um berreiro, fazer pirraça, querer tudo facilitado não nos faria fortes nem resolveria nada. Não duvidem de que esta geração de agora irá sentir saudades quando o tempo das recordações dela chegar e reclamar da nova que vier, achando-se melhor e mais sábia, integral aproveitadora da tecnologia e do conforto, afinal,  assim vai o barco da vida debaixo do mesmo sol. Cada qual vivendo de modo único a própria época. Da minha, o merthiolate é um símbolo. O cair, ralar-se e levantar-se, cair de novo e levantar-se outra vez sem tempo para chorar será sempre o grande exercício. Por isso, estou aqui. Ainda.               *Meme é o termo que descreve um conceito de imagem, vídeo e/ou relacionados ao humor, que se espalha via Internet.[1] O termo é uma teoria ampla de informações culturais criada por Richard Dawkins em 1976 no seu livro The Selfish Gene.( Wikipédia)

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