Obra
Mariana Luiza 22/01/2017 01:20 - Atualizado em 19/05/2020 10:40
Não parecia ser um sonho, mas era tão surreal. Eu sentia o cheiro dos cômodos, as texturas e as dimensões dos móveis. Ouvia os barulhos comuns de um apartamento com muita nitidez e clareza. Tudo era muito familiar e palpável, na mesma proporção que fantasioso e louco. E a todo instante eu conscientemente me perguntava: “Será que eu estou sonhando?” O piso do apartamento tinha uma rachadura contínua da porta de entrada ao final da parede. Uma fenda de quase 10 centímetros que dividia a sala em duas metades. Era como se o chão se movesse para os lados, tal duas placas tectônicas que se deslocam em desencontro. Meu irmão, criança, dormia no piso de uma das metades da sala. E eu esperava pelo seu despertar para fugir daquele lugar em ruínas que desaparecia a qualquer instante. Por dias esperei acompanhando o diário afastar do piso. Os ladrilhos da parede da cozinha se esticavam como chiclete entre os dentes e dedos de uma criança, atrasando a ruptura, adiando o momento da separação. Eu, desesperada, sabia que muito em breve ficaria sem casa, mas ciente da minha impotência nada fazia, esperando apenas que a surreal realidade fosse fruto da minha imaginação. Mas não era. Eu sentia tudo aquilo com muita veracidade. O tempo passava e meu irmão dormia, enquanto eu aguardava. O teto do apartamento já não existia. Os andares acima haviam desaparecido e eu via o céu azul com gaivotas planando sobre nossas cabeças. Debaixo da fenda, a cidade pulsava em polvorosa. Carros transitavam freneticamente, em meio ao som de buzinas e motores, de um lado a outro. Assim com as pessoas, as bicicletas, e os animais urbanos. A vida acontecia debaixo dos nossos corpos. E meu irmão, criança, dormia. Enquanto eu, inerte, esperava. Meu apartamento flutuava suspenso sobre vigas invisíveis. Agora, já não havia paredes. Nem móveis. Uma moldura de janela insistia em desafiar a gravidade, enquanto meu irmão, criança, dormia. Eu pensei que pudesse ser um sonho. Meu irmão já não era tão pequeno. E consciente, sabia disso. Tentava me alertar sobre o tempo, sobre o espaço. Mas todo o resto, inclusive o apartamento suspenso contrariando a gravidade me parecia muito real. As sensações que eu tinha eram verdadeiras demais para um devaneio. Acordei com uma hora de atraso ao meu horário habitual. O telefone tocava insistentemente na cabeceira da cama. O fornecedor de pisos dizia do outro lado da linha que a quantidade comprada não poderia ser entregue no prazo combinado. Desliguei o telefone tonta com aquela informação misturada ao sonho real que tinha vivido. Resolvi ligar pro meu irmão. A testosterona denunciada na voz masculina me trouxe a prova que precisava. Eu já não sonhava mais. E a obra não estava no fim.

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