Dois minutos de ódio
Alexandre Bastos 24/10/2014 18:59

A palavra releitura sempre me pareceu inadequada, por colocar a ênfase na repetição quando o espírito da coisa está na perpétua novidade. O leitor jamais mergulha duas vezes no mesmo livro. Seja como for, fiz uma releitura de “1984” recentemente. Este clássico de George Orwell muda com o passar do tempo, e não é porque o título fixa uma data, mera inversão de 1948, ano em que o autor lhe pôs o ponto final.

“1984” foi o primeiro romance que li diretamente em inglês, emprestado por um amigo da turma de praia que estudava na Escola Americana. Éramos adolescentes, ou seja, vivíamos sob a ditadura militar brasileira. Essa dupla circunstância nos deixava aterrados pelo aspecto mais óbvio da distopia: a denúncia de que governos totalitários conseguiriam, num “futuro” que estava mais perto de nós do que de Orwell, controlar inteiramente não apenas os atos, mas também os pensamentos das populações.

(...) Ter relido “1984” trinta anos depois do “futuro” de Orwell, e em pleno período eleitoral, deixou-me rindo de nervoso com outra característica da sociedade ali descrita. Nos chamados “Dois Minutos de Ódio”, os habitantes de Oceânia se reúnem para insultar freneticamente a imagem do dissidente e terrorista Emmanuel Goldstein até que o rosto severo mas reconfortante do Grande Irmão, cujo nome jamais é dito, o expulse da “teletela” — e libere as pessoas para, esvaziadas de sua raiva, retomar suas atividades.

George Orwell, quem diria, era um otimista. Não pelos dois “Dez Minutos de Ódio” a que assistimos na TV durante a propaganda eleitoral gratuita no segundo turno. Na atual lógica de campanha política, o acento não pode ir para os consensos mínimos, propostas: tem de ir para as dissensões máximas, agressões. Na “novilíngua” dos marqueteiros, o objetivo é “desconstruir” o adversário. Isto é, destruí-lo. O mais tenebroso é a esterilização de qualquer debate consequente entre os eleitores, por conta dos tweets, dos e-mails e dos posts de ódio, por conta do patrulhamento recíproco.

Não sei se concordo com o presidente do TSE, ministro Dias Toffoli, quando ele diz — em entrevista a Carolina Brígido e Isabel Braga — que “se até aqueles que querem presidir a República estão num nível tão baixo, a pessoa se sente mais à vontade para agredir quem pensa diferente dela”. Não sei se a maré de sangue desce até as redes sociais ou se ergue das redes sociais e é surfada pelos marqueteiros. Talvez, no final das contas, nós amemos o Grande Irmão porque nós somos o Grande Irmão.

* Texto publicado no jornal "O Globo" (aqui)

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