Confissão
Mariana Luiza 22/01/2017 01:20 - Atualizado em 19/05/2020 10:38
Assim que eu soube que ele havia morrido, fui até a estante a procurar pelo exemplar autografado. Num golpe de sorte em meio a uma muntueira de livros prestes a mudar de casa, encontrei, de imediato, o Romance d’'A Pedra do Reino e do Príncipe do Sangue do Vai-e-volta. Eu não lembrava o que ele havia escrito na dedicatória. Fazia quase dez anos e o mundo era outro. O meu mundo também já não era o mesmo daquele dia de julho. Conseguir ingressos para a disputada Mesa 17 da FLIP de 2005 não foi tarefa fácil, tentamos na internet quase que uma centena de vezes. Por fim, há poucos minutos antes da Mesa, compramos os ingressos nas mãos uma senhora que havia desistido da festa. Às 11:45, pouquinho antes da hora do almoço, Ariano começou sua aula-espetáculo. Foi recebido de pé por um público de 750 pessoas, das quais eu e minha mãe, fanaticamente, fazíamos parte. Lá fora, de frente a um telão montado próximo a Praça da Matriz outras mil pessoas assistiam à transmissão, rodeada por um bocado de pessoas que não conseguiram ingressos e se amontoavam ao redor da tenda buscando ao menos ouvir um pouquinho daquele discurso emocionante. Ariano foi ovacionado do começo ao fim. Dentro da tenda, risos, gargalhadas e lágrimas se misturavam ao som de sua voz rouca. Ele contou anedotas, histórias improvisadas da sua vida e prestou uma homenagem a Miguel de Cervantes e seu herói Dom Quixote. Ao final da aula-espetáculo, aplaudido de pé, Ariano acatou nosso pedido de bis e presenteou a todos com mais meia hora de uma prosa deliciosa. Novas gargalhas. Novas lágrimas. Já passava da hora do almoço, meu estômago roncava, mas nós na plateia estávamos inquietos por aquela sagacidade tão espirituosa. Da fome no estômago, me lembrava pouco. Quando deixei a Tenda dos Autores, a fila para a mesa de autógrafos já quase alcançava a ponte sobre o Rio Perequê-Açu. Entrei no fim da fila desejando uma dedicatória no lugar do almoço. Ariano passou cerca de duas horas autografando seus livros. Fez uma pequena pausa para um copo de suco com três biscoitinhos. E apesar de visivelmente abatido pela fome e cansaço, estava enérgico e feliz com o tamanho da fila. Ariano não assinava apenas o nome na contra capa dos livros. Proseava um pouco e escrevia completas dedicatórias a cada um de seus leitores que esperavam pelo carinho na fila de autógrafos. A fila mal andava quando um membro da organização da FLIP pediu a todos que estivessem fora do alcance dos olhos de Ariano, fossem aos poucos abandonando o saguão de autógrafos. “Ele está sem almoço. Tomou um lanche, mas estamos preocupados porque tem 78 anos e já mostrou alguns sinais de franqueza. Mas Ariano se nega a sair da mesa de autógrafos até que o último leitor tenha seu livro assinado.” A fila foi se desfazendo discretamente e um círculo de fãs se formou próximo a saída do saguão. Ariano não percebeu a armação e depois de alguns autógrafos se deu por satisfeito da missão cumprida. Eu que estava sem autógrafo e sem almoço me senti cheia de uma estranha realização traquina e um pouquinho vil. A de uma trapaça eficazmente concluída. Era mais uma dessas mentiras gostosas da vida que a gente conta a uma pessoa querida para poupá-la de uma verdade desnecessária. O mundo está cheio de verdades desnecessárias. Eu deixava o saguão, cheia dessa estranha satisfação, quando uma amiga veio ao meu encontro com o exemplar do Romance da Pedra do Reino. Ela havia contado de mim para Ariano e do meu sonho em me tornar uma romancista. Quase dez anos depois desta dedicatória surpresa, releio e pouco reconheço meu sonho escrito e dedicado por um escritor famoso a uma Mariana que ele nunca viu. Eu me pergunto em que dia, desses quase dez anos, Dom Quixote e meus sonhos sumiram no mundo imaginário por não aguentar tamanha chatice de realidade. Não sei nem para onde foram as justificativas de um sonho ausente. Talvez porque ultimamente tenho lido pouco. Tenho visto mais da vida na arte, do que a arte da vida. Talvez porque alguém tão real, como estou ultimamente, já nem mereça mais o desejo de sonhar ser escritora e por isso eu o havia esquecido. Eu espero que esta dedicatória me traga de volta Dom Quixote, seus sonhos ingênuos e pouco reais e a pessoa que eu era quando ouvi Ariano pela primeira vez.

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