Firmino
lucianaportinho 17/02/2013 18:12
Publico texto de  Geraldo Machado. Nos leva a um tempo histórico brasileiro, da segunda metade do século XX. Advogado, produtor rural e colaborador da Folha da Manhã; conheço Geraldo Machado desde logo que em Campos aportei.  O registro traz a saga de um homem comum, que como o próprio autor define,  "Patrono de minha infância e testemunha de meus inquietamentos juvenis. É o retrato insuspeitado do homem que se dera à sua condição própria, de operário. Num momento crucial. Aí vai, sem pretensão alguma a mais do que o relato, puro".
FIRMINO 
Geraldo Machado
Era um negro alto, forte, ereto, fala mansa, extrema agilidade. Fala pausada, tudo ouvia com atenção. Ria poucas vezes, mas escancaradamente de sucessos e estripulias que os meninos aprontavam. Não disfarçava o orgulho de ouvir histórias, relatos, nenhum reparo, nenhuma admoestação. Em tempos passados, dizia-se que fora forte, bom de briga, não levava desaforo, nunca fugira de embates, transmudava-se em lince, rápido. Dizia-se que não poucas vezes enfrentara muitos e muitos vencera nos combates, comuns aqueles velhos carnavais, quando era usual no encontro dos “cordões de índios” resultar em pancadaria das grossas, daquelas de por todo o mundo, no centro, a correr, sem destino certo. Dentre as histórias que lhe atribuíram, uma em que, acuado por 3 ou 4 policiais, mais alguns “inimigos” do “outro” cordão, partiu para cima, já que para o perigo - coragem...Ao menos quatro foram parar no meio do valão, salvos de afogamento por obra e graça do acaso ou da sorte ou da misericórdia... Na labuta diária, trabalhava duro, na lavoura em terras da usina. Em tempos de férias, costumava pegar uns “bicos” como vigia de casas da cidade, temporariamente abandonadas pelas famílias que iam veranear, até o carnaval chegar... A pouco e pouco, foi se fixando – nesse mister – em nossa casa, tanto que, já casado, ainda o convoquei a meu serviço, em minha casa, já no início das “temporadas”... Nunca se alterou, sempre se mostrou solícito em fazer o que advinhava fosse uma necessidade de cada um de nós, mesmo que passageira... A conjugação desses aspectos de sua personalidade, davam – no entanto – uma dimensão equivocada de sua consciência como classe permanentemente espoliada. Dia Primeiro de Abril de 1964. Os milicos ainda não se sentiam seguros, e, já cedo, rumavam ao centro, à Praça do Salvador, milhares e milhares de trabalhadores de usinas, de fazendas de usinas, ferroviários, empregados de empresas de transporte, de água, luz, esgotos, etc. Desde manhãzinha – embevecido – assistia aquele desfile, em que a alma popular expressava a repulsa ao golpe já anunciado e prestes e se tornar vitorioso. Cada caminhão apinhado ecoava um canto de guerra, palavras de ordem, em alto e bom som, emitidas daquelas gentes, suadas, temperadas na força do embate diário, que se repete desde milênios... E, de repente, vieram os caminhões trazendo os operários da Usina Queimado. Apressei o passo, fiquei rente ao caminho que seria percorrido por essa parte do cortejo. E lá, no alto de um dos caminhões, empunhando uma enxada, qual uma lança – o velho e bom e doce FIRMINO. A berrar, a plenos pulmões, JANGO, JANGO, JANGO. Até perdê-lo de vista quando se diluiu na multidão que já se acumulara na praça, pude experimentar um sentimento, até então não suspeitado, sequer. Nosso FIRMINO, amável, amigo, conselheiro às vezes até – TINHA CONSCIÊNCIA DE CLASSE – ali engrossava o coro das multidões que as marchas de carolas e o som das cornetas e o tropel sufocaram. E me senti feliz, como há muito tempo não ficara, e muito tempo depois não esqueceria...  

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