COMPASSO MARCADO
Luciana Portinho
Naquela tarde, estava no cais. De pé, olhava em direção ao mar. Imenso aquário de infinito mistério. Visto da terra, aquele azul profundo lhe metia medo. Não era o azul oceânico. Ventava forte e a maresia impregnava até sua alma. Perto dali, algumas crianças brincando de baleba, outras no ágil manuseio do cerol das pipas embaralhadas. Não havia dúvida, até aqui, este fora seu porto. Sempre retornara a ele. Por entre a cantoria das gaivotas e as mãos dos pescadores correram seus sonhos. Até hoje, ainda se questionava ter nascido fêmea. Se homem fosse, mais aceita teria sido sua vida.
Sabia-se uma mulher com encantos. Bem lhe fazia bulir com os homens. Alguns de fato eram atraentes, na palma desses tinha se deixado ficar. Aquele lugar era pequeno demais para a sua alma liberta. Filho não quisera ter, nem marido. Só, se impusera pela própria trajetória. Não saberia ter vivido o tempo todo fixa na terra; esperando, bordando, murchando.
Agora, parada - imersa em lembranças - as cenas ganhavam animação.
No início, os marujos resistiram à decisão de com ela partilhar os percalços mar adentro. Entendiam como um cio, capricho de vadia. Doidivana. Fora assim vista por todos. Depois, nos perigos do mar mostrara a que veio: insuperável na destreza de um leme, no manejo das velas. Na exata previsão dos humores das ventanias dialogava com as tempestades. Nestes momentos limiares, no turbilhão da imprevisibilidade ela era acometida de uma cálida calmaria. Havia nela uma sólida sintonia com as forças da natureza. Ali, na suspensão temporal, procuravam pelo corpo, por gotas de seu suor se hidratavam, vasculhavam seu olhar como se bússola fosse.
Diziam, nela haver, as profundezas do contorno de Iemanjá, a rainha do mar. Conquistara assim o espaço individual.
É puxada para o presente por uma lufada fria. Um tremelique a percorre. Apruma o corpo, os seios já rígidos. Aos poucos, uma nova imagem ingressa no seu foco visual. No horizonte, cresce. Esplendorosa nau. Galera das amplas velas brancas, ESTUFADAS. Nave dos longos deslocamentos viera lhe buscar.
[caption id="attachment_5574" align="aligncenter" width="350" caption="Muchacha de Espaldas, Salvador Dali, 1925."]
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