A primeira de todas as histórias
Mariana Luiza 22/01/2017 01:18 - Atualizado em 20/05/2020 13:00

kombi
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1988. Eu tinha sete anos e estudava no turno da tarde do Colégio Santa Teresa de Jesus, na Tijuca. Meus pais trabalhavam fora enquanto minha avó, que morava conosco, ficava em casa cuidando do meu irmão - um bebê de dois anos. O trajeto de casa para o colégio era feito pela Kombi do Manoel, um homem jovem, com pouco mais de trinta anos, que sozinho conduzia para a escola 14 crianças que moravam nas redondezas do bairro.

O trajeto de casa para a escola durava mais ou menos quarenta minutos. A volta, por conta do trânsito mais intenso, era um pouco mais demorada. Durante este tempo, eu que quase sempre me sentava no banco da frente da Kombi, atitude inquestionável nos anos 80, passava a viagem contando histórias da minha família para Manoel e meus coleguinhas.

Como boa leonina, duas coisas me deixavam bem vaidosa: Sentar no banco da frente da Kombi era uma delas. Ser ouvida pela maioria que me cercava também. Então, eu poderia dizer, sem exageros, que a Kombi do Manoel era um dos meus lugar favoritos da vida.

O enredo principal das histórias que eu contava girava em torno das frustrações e alegrias dessa família que se preparava para receber dois novos integrantes: um casal de gêmeos bivitelinos ainda em gestação. 

Todas as segundas-feiras, eu introduzia uma nova subtrama que narrava em detalhes as peculiaridades da gestação dos gêmeos. Dos enjôos matinais dos primeiros meses à decoração do quartinho das crianças.  

Um pequeno detalhe tornava esta história muito mais interessante e menos convencional para ser narrada por uma criança de 7 anos. A minha mãe não gestava gêmeos. Tampouco estava grávida. Minha família se resumia apenas a eu, meu irmão, meus pais e minha avó.

O que intriga nessas lembranças, é que eu não me recordo de sentir medo ou vergonha em inventar narrativas ficcionais contadas como verdade. Eu sabia que Manoel, conhecia minha mãe. Encontrava-se com ela todo final de mês para receber o pagamento. Mas o fato dele saber que a gravidez era mentira não me incomodava. Aliás, Manuel era de todos, o mais interessado e curioso por minhas histórias.

Como material de pesquisa, eu li diversas revistas de decoração que a minha mãe tinha na sala de espera de seu consultório dentário. Uma das minhas preferidas tinha uma matéria de capa sobre decoração de quarto de bebê. Sofá para amamentação, cadeiras de balanço, berço com gaveteiro para economizar espaço. Lembro da capa, das páginas da revista e do cheiro do consultório da minha mãe quando penso nesta história. E me recordo também de muitos episódios, e do meu preferido: O dia que minha mãe descobriu que esperava gêmeos, ao invés de um filho único, como planejara.

O tempo foi passando, e Manuel e alguns amiguinhos da Kombi esperavam ansiosos pelo capítulo final da saga: O nascimento. Estava perto. Eu já tinha narrado todas as consultas de pré-natal, os enjôos, a obra do apartamento, a escolha dos nomes, a decoração do quarto e os planos dos meus pais em relação ao futuro dos bebês.

Minha mãe já estava com 8 meses, prestes a parir a qualquer momento e tudo corria bem até o dia em que ela saiu mais cedo do consultório e decidiu me esperar na portaria do prédio. A Kombi chegou na portaria e lá estava ela, magérrima, sem nem uma barriguinha de chopp, mas prestes a parir os meus irmãos gêmeos. Lembro como hoje o olhar decepcionado da minha coleguinha Beatriz ao descobrir que minha mãe nunca estivera grávida. Lembro também do sorriso cínico do Manoel. Era meu fim! Completamente desmascarada, não me restava outra alternativa a não ser a de me calar até o fim do ano letivo.

Mas não foi isso o que aconteceu.

No dia seguinte, eu subi na Kombi, novamente no banco da frente, com a mesma altivez de artista e retomei a história do ponto onde havia parado. Sem o mínimo pudor, ou vergonha das minhas criações artísticas narrei com detalhes o último exame pré-natal feito por minha mãe. O público continuou interessado. Manuel me escutava atento. Beatriz até se emocionou quando eu contei que acompanhei minha mãe no exame de ultrassom e ouvi os dois coraçõezinhos galopando em seu ventre.

E a história continuou. Como deve ser.

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