MITINGA
lucianaportinho 30/11/2011 13:12
MITINGA luciana portinho Não suportava mais aquela rotina de servidor público e ainda mais, a de não concursado. Não era um alguém, enxergava-se como um sub-funcionário. Nunca lhe diziam tudo. Ao contrário, quando o chefe lhe chamava sempre ouvia algo do gênero: “ Amanhã tem que estar tudo pronto, vai virar a noite toda batendo cheques e montando os processos”. “Sem perguntas, não tenho que dizer nada, nenhum detalhe, cara.. é pra isso que você recebe”. Era o preço, sabia. Departamento financeiro, este o lugar onde trabalhava. Uma encrenca só. E bico calado ou dançava. O que ainda o distraia eram os colegas da repartição. Cada qual com sua esquisitice particular. Simone, uma colega mais velha, era feia, complexadíssima. Inventava que a prefeita a chamava no orelhão instalado dentro da repartição. Pensava ganhar desta forma, prestígio junto aos colegas. Estes, por sua vez, fingiam acreditar e se divertiam, pediam detalhes da conversa. Um sanatório geral. Tinha aquela que se julgava a mais gostosa, Rosane, e realmente era. Roupa sempre arrochada, coxas roliças, empoleirada no tremetreme de um salto alto, os peitos transbordando. A maldita andava num rebolado de câmera lenta. Frisson maior era quando resolvia se sentar na mesinha da recepção. Na vista dos marmanjos até os fundilhos da calcinha de renda fazia questão de mostrar. Era casada com um troglodita. Ciumento, machão e bocó que em todo final de expediente batia ponto e sumia com ela. Assim transcorriam os longos dias de trabalho. Nenhum planejamento das atividades, marasmo quebrado por urgências às quais ele se desdobrava para resolver. Como naquele dia... sem mais nem menos foi ultimado a comprar um pato vivo no mercado municipal para Simone fazer a macumba dela. E quem seria doido de negar? Tinha mesmo cara de bruxa a danada. Na base do nariz uma verruga escura, cabeluda e na boca torta, dentes amarelos. Logo surgiram dinheiro e carro para que ele fosse "pagar" o pato. Numa tarde dessas em que estava desatento, descobriu sem querer que o chefe tinha uma amante. Foi a chave da mudança. Daí em diante, recebeu um aumento informal, sanduíches naturais no lanche e coisa e tal. Manter em segredo a descoberta facilitava a vida... Talvez esta rotina medíocre ao longo de uma década explique a tara que, sorrateiramente, foi se instalando em sua mente até por completo dominá-lo. Nunca ouvira falar de algo parecido, pelo menos nisto se sentia original. Começou no dia em que compareceu ao velório do marido de Mariana. O cara além de bonitão era tido como um crânio, inteligência sempre engatilhada, brilhante mesmo. Acontecimento concorrido, quase uma festa. Discursos, muitas coroas, as costumeiras moscas inconvenientes, uma difusa consternação. Naquele sufocado ambiente nasceria aquela que seria sua síndrome maior, da qual se envergonharia os restos de seus dias se mais alguém além dele soubesse. Que merda! Qual o nome para esta patologia de furtar o Livro de Presença de um velório? Só isso agora valia a pena,nada mais. Pra que meleca serviria este monte de livros roubados com o nome do defunto e de quem lá esteve? Personalidades desconhecidas. Monte de garranchos, entremeados por despedidas arrastadas. Infelicidade... só este diagnóstico lhe restou. Sucumbido à rotineira monotonia, fazia da morte alheia uma aventura. Um cheiro de flor velha penetrava suas narinas. Enjoo e suor. Desconforto e inadequação... Sentiu-se comprimido, o coração disparado...naquele momento nitidamente vislumbrou todo o desperdício de sua existência. Transformara-se num secreto colecionador de livros de despedidas funéreas...  

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