Falando no Celular
lucianaportinho 20/02/2011 21:01

Falando no celular

João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo - Domingo, 2 de janeiro de 2011 (...) sou obrigado a reconhecer meu reacionarismo em matéria de celular, pois sou a única pessoa que conheço que não tem um. Não estou seguro de que sobreviverei dessa forma muito tempo. O número do celular está começando a ficar tão universal que daqui a pouco será como o CPF, hoje exigido até para se tomar um cafezinho. O sujeito que confessa não ter celular é visto como um anormal certamente perigoso. Outro dia, uma repórter me telefonou e me deu essa impressão. Ela queria fazer uma matéria sobre gente que não tinha celular e não achava ninguém, até que lhe disseram, para sua grande incredulidade, que eu devia ser o último habitante da cidade a não ter um celular. A sensação que me deu, depois da conversa, foi que ela desligou me achando muito estranho e resolvida a, se bater comigo na rua, me evitar como se evita um maluco capaz de qualquer coisa. Mas, ao contrário do que ela certamente ficou pensando, não tenho ódio ao celular. Simplesmente acho que não preciso dele, como não precisei até hoje. Além disso, ele às vezes me deixa nervoso, por desencadear fenômenos para mim inexplicáveis e, às vezes, um pouco inquietantes. Por exemplo, por que, assim que o avião para na pista de aterrissagem, todos os passageiros têm a necessidade imediata de falar no celular? Não dá para esperar nem entrar naquele canudo de aeroporto, porque o pessoal vai tirando a maleta do porta-bagagem e com a outra mão ligando o celular. Creio que dava para algum sociólogo fazer um trabalho sobre o assunto. Não seria descabida a tese de que o povo brasileiro padece de uma ancestral carência telefônica, causada pelo tempo em que, para ter um telefone em casa, o sujeito precisava torrar a poupança, tomar financiamento a longo prazo e arrumar um pistolão. Claro que essa conversa de que é para ganhar tempo não tem a menor correspondência na realidade. Para começar, diversos amigos meus passam tanto tempo mexendo com os recursos do celular para ganhar tempo, que não têm mais tempo para nada. O tempo necessário para aprender a usar recursos para economizar tempo é tanto que lhes toma todas as horas, livres e não livres, e um deles, que é meio obsessivo-compulsivo, descobriu que seu celular tem não sei quantos bagulhos para vender em suas mil lojas virtuais e não descansará enquanto não se inteirar de todos, item por item. Continuo a resistir, mas receio que a luta está perdida. Até porque, como venho descobrindo, não é preciso ter celular para usá-lo. Há muito tempo não permaneço em lugar público nenhum sem ouvir conversas em celulares alheios, algumas das quais dão vontade no ouvinte de pedir que não o envolvam naquela confusão. Já estive em cabines de elevador cheias onde parecia haver uma assembleia de papagaios, com todo mundo falando ao celular. Já vi gente conversando pelo celular dentro do mesmo restaurante. Talvez o celular venha a substituir todas as outras formas de comunicação, quem sabe? Espero que haja mercado para redatores de torpedos, vou me qualificar.

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